sábado, julho 04, 2009

Homem do barrete que dá a volta a situações impossíveis

Origem do documento: jornal "Diário de Notícias", Lisboa, 04 Jul 2009


Kumba Ialá é uma das figuras mais complexas da política guineense, mistura de rebelde e líder tribal balanta, com percurso ideológico invulgar, pelo menos segundo a lógica das abordagens europeias. Os resultados das eleições presidenciais de domingo, apresentados esta semana, dizem que ex-presidente da Guiné-Bissau passou à segunda volta. As suas hipóteses de vitória parecem magras, mas o facto é que Kumba sempre foi subavaliado.

O seu lado folclórico, o barrete vermelho, por exemplo, favorece análises superficiais. Por outro lado, o tribalismo perturba. Muito daquilo que diz é estranho e o seu passado inclui inúmeros desvios das normas diplomáticas. Mas este será um Kumba visto de fora. O que conta são os eleitores guineenses: e estes já tiveram muita confiança nele, a ponto de o elegerem em 2000.

A repetição dessa vitória não será fácil. Na primeira volta das presidenciais de 2009, o candidato, de 56 anos, conseguiu apenas 29,4%, não chegando a 100 mil votos. Ficou a quase 40 mil do rival apoiado pelo PAIGC, Malan Bacai Sanhá, que teve 39,6%. A segunda volta decorrerá num ambiente crispado e Kumba tem alimentado esta ansiedade com afirmações bombásticas.

A sociedade guineense está traumatizada pela violência política, pela corrupção e pelo narcotráfico, que fazem caminhar o país na direcção de Estado falhado. Os militares exercem um poder paralelo, que os civis não controlam. A democracia é precária.

Kumba Ialá conhece bem esta precariedade. Nascido em 1953, em Bula, no coração balanta do país, o político é filho de pais camponeses, mas conseguiu estudar teologia e filosofia em Portugal. Passou pela Universidade Católica, mas também pelo clube de futebol Louletano, onde chegou a jogar, não sendo claro se foi extremo-esquerdo ou avançado centro.

Segundo a biografia oficial, Kumba pertenceu desde cedo (com nove anos) ao movimento de guerrilha e ao PAIGC. Até 1990, não se conhece bem o seu percurso, mas sabe-se que foi expulso do partido. Alguns dirigentes do PAIGC acusam-no de ter participado no "golpe" de 1986, na sequência do qual foram mortos Paulo Correia e Viriato Pã. Este episódio (a eliminação dos dirigentes balantas que Nino Vieira via como ameaça) foi um dos factores nas origens da guerra civil de 1998.

Nos anos 90, Kumba foi um dos poucos políticos que se atreveram a desafiar o poder absoluto do então presidente Nino Vieira. Foi derrotado nas primeiras eleições (que Nino venceu facilmente) e quando rebentou o movimento da junta militar, Kumba Ialá ficou no exterior das perturbações e parecia ter terminado a sua carreira.

Isso não aconteceria. Mais tarde, quando esteve no poder, entre 2000 e 2003, altamente condicionado pelos militares, Kumba confirmou muito daquilo que hoje se escreve sobre ele: a sua presidência foi errática, definida pela corrupção, pelo favorecimento dos balantas e pela fraqueza geral do poder civil.

O mandato não se concluiu, sendo marcado pela morte do brigadeiro Ansumane Mané que liderara o movimento da Junta militar que derrubou Nino. Aliás, os mandingas não devem perdoar a Kumba este sangue derramado. Em 2003, perante o falhanço económico e a incapacidade de pagar salários à tropa, o presidente foi derrubado pelos militares. Humilhado, o homem grande saiu pela porta pequena.

Só que na Guiné o mundo dá muitas voltas. Kumba regressou para as eleições de 2005, mas teve um mau resultado, vencido pelo independente Nino Vieira, outro regressado, que depois bateu Malan Bacai Sanhá na votação final. Depois de ser eleito, Nino também se confrontou com o colete-de-forças dos militares, tentou reinar sobre eles e acabou por ser morto em Março deste ano. A história repetiu-se: marcação de eleições, Kumba a regressar do exílio, transformado pela sua conversão ao Islão, religião que estudou durante dois anos em Marrocos. O antigo presidente também mudou de nome, para Mohamed Ialá Embaló.

O carisma do candidato é inegável, como é evidente a sua capacidade de arrastar multidões e de as impressionar com discursos inflamados. Assim aconteceu na campanha de Novembro e Dezembro de 1999, quando o partido de Kumba (PRS) incendiou a política guineense. Tal como agora, em 1999 o país estava cansado da violência e do medo, após ano e meio de alta instabilidade, que incluíra sete semanas de guerra civil.

Em 1999, o então presidente Nino Vieira foi obrigado a sair para o exílio e Bissau vivia dias difíceis, com um contingente internacional incapaz de impedir o triunfo final da Junta Militar. Pormenor pouco referido: os militares que hoje estão no poder passaram pela Junta e não esqueceram esta intervenção dos países vizinhos, daí que não sejam entusiastas de nova força internacional de estabilização.

Dez anos depois, o país não mudou tanto assim. O medo persiste, Kumba Ialá é um dos dois candidatos. Parte com desvantagem, mas não deve ser descartado, pois este homem domina o segredo de dar a volta às situações políticas mais impossíveis.



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