domingo, agosto 07, 2005

Sobre "O manifesto antiesclavagista dos Capuchinhos espanhóis de Bissau em 1686"

O MANIFESTO ANTIESCLAVAGISTA DOS ÚLTIMOS CAPUCHINHOS ESPANHÓIS DE BISSAU (1686)
por Avelino Teixeira da Mota

in "As viagens do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné"
Biblioteca da Expansão Portuguesa
Publicações Alfa, S.A., Lisboa, 1989


Como adiante se indicará mais em pormenor, o pe. J. B. Labat, na sua muito conhecida obra relativa à África ocidental, utilizou largamente o texto de La Courbe, mas encabeçou as suas viagens em A. Brüe. No respeitante a Bissau, serviu-se da relação de La Courbe e também de outra respeitante a viagem que efectivamente lá fez A. Brüe em 1700. Entre o mais, fala dos missionários lá existentes, e é fácil concluir, pelo cotejo com o que nos chegou da autoria de La Courbe, que nessa parte se utilizou, sobretudo, do texto deste, embora reporte os acontecimentos a 1700. Diz Labat (I) que os missionários eram então três e que:

Ils prêchoient la foi jusque dans les navires anglais, qui avoient traité des captifs, et par le moyen de jeunes negres à qui ils avaient enseigné la langue portugaise, et qui leur servaient d'interpretes et de catechistes, ils faisaient entendre les vérités de notre religion à ces pauvres esclaves, et les baptisaient. Ils allaient prêcher de tapade en tapade, et rassemblaient deux ou trois fois le jour à l'Eglise ceux qu'on pouvait regarder comme des Catecumenes, et leur apprenaient leur Catechisme et leurs prieres... Ils firent un manifeste pour justifier leur conduite, s'aviserent hors de propos de condamner tous les chrétiens qui retenaient d'autres chrétiens, quoique noirs, dans l'esclavage; ils condamnerent encore ceux qui les vendaient aux Anglais ou Hollandais, chez lesquels il était sûr qu'on ne leur parlerait jamais de la foi, et encore moins de la liberté, quoiqu'ils eussent été baptisés; ils firent des discours dans lesquels il taxaient leurs compatriotes d'une maniere un peu trop marquée, d'empêcher par leurs déreglements les progres de la foi, et ils envoyerent ce manifeste en Espagne et en Portugal, et le porterent avec eux à la Martinique, ou ils furent obligés de passer dans un vaisseau de la Compagnie de France, pour de là trouver une occasion de repasser en Portugal; parce que ce manifeste avait soulevé contre eux tous leurs compatriotes des Bissaux et des environs à qui une pareille morale ne convenait point du tout. Elle ne fut pas plus goutée à la Martinique, les Puissances les prierent de garder leur manifeste, et de ne rien remuer sur cet article.

O historiador Berlioux, no seu conhecido livro sobre André Brüe, ocupa-se destas informações de Labat para pôr em relevo o alto significado moral da atitude dos missionários de Bissau, que ele julga serem portugueses, como se deduz da redacção de Labat (II). Através de A. Arcin, esta opinião foi retomada por João Barreto, que escreve que «os frades de Bissau, sob a orientação do bispo D. Vitoriano da Costa [...] foram os primeiros a reagir contra a escravatura convertida em um puro negócio de carne humana» (III).

Não conhecemos nenhum documento português que se identifique com o manifesto referido por Labat, mas, em contrapartida, sabemos de outro, datado de 14 de Abril de 1686, em que os três últimos capuchinhos espanhóis que assistiram em Bissau analisam miudamente a injustiça da maior parte dos cativeiros que se faziam na Guiné. Devem ser estes capuchinhos que La Courbe encontrou em Bissau (de onde terão partido alguns meses depois) e que diz terem-lhe dado uma cópia de um manifesto em que punham a claro que quase todos os escravos eram cativados injustamente. Foi Labat quem tudo baralhou, chamando-lhes portugueses e relacionando-os com a viagem de André Brüe de 1700. Dê-se o seu a seu dono, não fazendo de D. Fr. Vitoriano Portuense uma espécie de patrono dos autores daquele manifesto, até porque ainda não fora sagrado bispo nem viera para Cabo Verde quando tal documento foi redigido.
Labat, em parte (que não transcrevemos) daquela mesma passagem, revela que os missionários estavam em conflito com os «cristãos» e os Papéis, por se recusarem a sepultar na igreja maus cristãos. Ora o episódio é amplamente relatado pelos próprios missionários espanhóis em carta de 1 de Junho de 1686 endereçada de Bissau a D. Pedro II (IV); este facto confirma o que dizemos quanto à autoria e data do manifesto.

O nosso amigo Pe. Francisco Leite de Faria, na notícia que deu da edição moderna da crónica do Pe. Anguiano (V), mostrou já amplamente, por outras formas, que o manifesto referido por Labat fora redigido pelos últimos três frades espanhóis que estiveram em Bissau. A análise do «Informe y relación» de 14 de Abril de 1686 que agora publicamos em F, ao que julgamos pela primeira vez, vem confirmar inteiramente os seus pontos de vista.

Antes de nos debruçarmos sobre esse importante documento, é conveniente, para sua melhor apreciação, recapitular o que até à época haviam escrito vários autores espanhóis e portugueses acerca da intrincada questão da legitimidade do cativeiro dos escravos oriundos da Guiné.

Num livro publicado em 1555, o Pe. Fernando Oliveira critica violentamente a escravatura e ataca os traficantes de escravos em termos muito duros:

E não é nesta parte boa escusa dizer que eles se vendem uns a outros, porque não deixa de ter culpa quem compra o mal vendido e as leis humanas desta terra e doutras o condenam, porque se não houvesse compradores não haveria mais vendedores, nem os ladrões furtariam para vender. Assim que nós lhe damos ocasião para se enganarem uns a outros e se roubarem, e forçarem, e venderem, pois os vamos comprar, o que não fariam se lá não fôssemos a isso, nem jamais o fizeram senão depois que os nós a isso induzimos. Nós fomos os inventores de tão mau trato, nunca usado nem ouvido entre humanos (VI). Não se achará nem razão humana consciente, que jamais houvesse no mundo trato público e livre de comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra e vende alimárias, bois ou cavalos e semelhantes. Assim os tangem, assim os constrangem, trazem, e levam e provam, e escolhem com tanto desprezo e ímpeto, como faz o magarefe ao gado no curral. Não somente eles, mas também seus filhos, e toda geração, depois de cá nascidos e cristãos nunca têm remissão. Já que damos a isto cor de piedade cristã, dizendo que os trazemos a fazer cristãos, não seria mal usar com eles dessa piedade, e dar-lhes algum jubileu depois de servirem certo tempo limitado por lei.

E o desassombrado padre prossegue na sua catilinária criticando o tratamento dado a muitos escravos pelos seus senhores e a hipocrisia destes, rematando:

E a mim me parece que seu cativeiro é bem desarrazoado quanto é da nossa parte, porque eles não nos ofendem, nem nos devem, nem temos justa causa para lhe fazer guerra, e sem justa guerra não os podemos cativar, nem comprar a cujos não são. Pois da sua parte se o eles merecem, nós não somos juizes disso, nem Deus nos fez verdugos da sua ira, mas manda que preguemos a sua fé com caridade e modéstia (VII).

Fernando Oliveira, portanto, reprova globalmente a escravatura e o tráfico de escravos exercido pelos Portugueses, negando a este um fundamento legal autêntico. Esta atitude, tão extrema para a sua época e que faz dele um grande precursor, não era, porém, a usual entre os teólogos e juristas de então, os quais, embora reprovando os excessos que se cometiam, apontavam que a escravatura - e portanto o tráfico de escravos - podia ser legitima em certas circunstâncias.

É o caso de Mercado e de Molina, os autores quinhentistas usualmente referidos nesta matéria como pioneiros do movimento de ideias contra a escravatura (desconhecendo-se a opinião anterior e mais radical de Fernando Oliveira).

O dominicano Frei Tomás de Mercado, natural de Sevilha, estudou no México, e foi em 1569 que publicou o seu afamado livro, em que inclui o capitulo «Del trato de los negros de Cabouerde» (VIII). Depois de evidenciar que a jurisdição dessa área era do rei de Portugal, afirma ser «pública voz y fama, que en rescatar, sacar, y traer los negros de su tierra para Indias, o para aca, ay dos mill engaños, y se hazen mil robos, y se cometen mill fuerças». Cativar e vender negros ou outras pessoas, diz ele, é negócio licito em três casos: a) guerra; b) delitos públicos; c) venda pelos pais.

Entre os povos não cristãos, é frequente, em caso de guerra, ficar o vencido escravo do vencedor, o que «se platica en Guinea mas que en otras partes», por serem muito pequenos os reinos e senhorios e assim se envolverem em frequentes guerras. Também entre estas mesmas gentes é lei que quem pratica certos delitos fique escravo e seja vendido, revertendo o produto para a república ou para a parte agravada, «y como son viciosos y bárbaros cometen enormes y detestables delictos por los quales segu~ sus leyes licitamente se cautiuan y vendem>. Finalmente, o terceiro título é o de os pais, em caso de extrema necessidade, poderem vender os seus filhos para bem destes, o que Mercado diz ser frequente na Guiné.

Mas o nosso autor aponta que aos escravos obtidos licitamente se juntam «infinitos fingidos, o injustos, que vienen engañados, violentados, forçados y hurtados», especificando os seguintes casos:

a) Às guerras justas, há a acrescentar muitas injustas, já que os Negros não se movem segundo a razão, mas sim por paixão, e, como os Portugueses e os Castelhanos pagam tanto por um escravo, mesmo sem guerra fazem caçadas uns aos outros, obtendo infinitos cativos contra toda a justiça;

b) Sob o pretexto de justiça, escravizam indivíduos com todas as suas famílias, por meio de enganos e testemunhos falsos; ou armam-lhes ciladas por meio de agentes seus, que os levam aos portos a vender;

c) Os pais vendem frequentemente os filhos sem ser em casos de necessidade;

d) Mercadores portugueses e negros metem-se pela terra dentro, a fim de trazerem escravos à costa;

e) Os mercadores europeus atraem negros aos navios por meio de enganos e, uma vez a bordo, largam do porto com eles aprisionados.

Mercado diz que estes últimos casos eram então menos frequentes do que antes, porque os Negros se foram tornando mais «ladinos» e porque o rei de Portugal promulgou e fez executar com rigor leis penais contra tal. Mesmo assim, «ha sido siempre publica voz, y fama, que de dos partes que sale, la vna es enganada o tyranicamente cautiva, o forçada», Trata-se, portanto, de um «trato tan infamado», pelo que ninguém se deve meter nele, «no ay otro mejor medio sino desistir dello». «Suele algunos allegar que el rey de Portugal tiene consejo de consciencia y es de creer, aurã visto y examinado este negocio, digo q personas curiosas destas gradas hã escrito a Lisboa, q los Theologos de Seuilla, y Castilla les pone escrupulo en este trato, rogãdoles se informe de los de alla, y hã les respondido: pesais q tenemos aca otro derecho o otra theologia? lo q alia dize dezimos, y nos parece peor como a personas q nos consta mejor la maldad q passa.» Desde já se chama a atenção para esta informação, pois uma série de testemunhos de que adiante nos ocupamos comprova que havia em Portugal quem se preocupasse com tal «caso de consciência».

Dos fins do século XVI para os começos do século XVII, foi publicado o De lustitia et Iure, do jesuíta espanhol Luis de Molina, que terminara os seus estudos em Coimbra, onde foi professor antes de se destacar na cátedra de Teologia da Universidade de Évora, tendo assim podido colher informações directas em Portugal quanto ao tráfico de escravos da Guiné. Além de referir alguns dos factos e opiniões de Mercado, junta-lhes outros, e tudo submete a cerrada análise jurídica, concluindo, entre o mais, que os Portugueses não curavam de averiguar da legalidade dos escravos adquiridos na Guiné e que nem o bispo de Cabo Verde, nem os sacerdotes, nem outrem na metrópole tinha escrúpulos na matéria (IX).

Esta opinião é certamente excessiva, pois chegou-nos uma carta do bispo de Cabo Verde (muito provavelmente D. Fr. Pedro Brandão), dirigida a el-rei à volta de 1600, em que propõe que sejam libertados os escravos que se cristianizarem, pelas razões seguintes:

Porque humanamente se não pode atalhar aos muitos modos com que injustamente os cativam. Porque uns são furtados por força ou engano, outros condenados sem culpa a cativeiro, como são as mulheres, filhos e parentes pelas culpas dos pais, outros tomados em guerras injustas, porque não tratam de jure, senão de quem mais pode. Outros vendidos por seus pais, sem necessidade bastante; outros com um artificio fraudulento de homem morto que descubra a casa do matador, quando querem cativar algum com toda sua familia, e outros por outros modos injustos. De sorte que dizem os práticos que de mil escravos que vêm ao Reino, os novecentos são mal cativos.
Nem parece que pode tal ser, porque os ministros de V. Majestade, quando muito, dão juramento a algumas pessoas que os tangomaus, ou mercantes, lhes apresentam, e juram que são escravos de boa lei, não o podendo saber, sendo trazidos de tantas e tão remotas partes. Por vezes se tratou na Mesa da Consciência do remédio, e não se acha nenhum que possa impedir estes ordinários escândalos
(X).

E o bispo prossegue com as vantagens de vária ordem que adviriam da libertação dos escravos que se cristianizassem. A. Brásio julga que o documento, que não está datado, poderá ser de D. Fr. Pedro Brandão, bispo em 1588-1608, que retirou para a metrópole em 1594 e resignou em fins de 1606. Podemos acrescentar, em reforço da sua opinião, que em 13 de Junho de 1700 D. Fr. Vitoriano Portuense, num dos seus muitos escritos em que propugnou o baptismo dos escravos, invocou o exemplo de D. Fr. Pedro Brandão, «que floresceu neste bispado há cem anos estimando como certo que os negros desta conquista de Guiné eram injustamente cativos, querendo impedir este contrato, e, vendo que o não podia, deixou o bispado, e se foi para esse reino recolher no seu cubículo». E ele mesmo afirma: «o meu escrúpulo não é tamanho que condene totalmente este negócio, pois o toleram tantos homens letrados, que permita Deus que acertem contra a opinião de muito grandes teólogos assentada sobre os fundamentos que eu mesmo em Guiné experimentei.» (XI)

Em 1604 foram para as ilhas de Cabo Verde os primeiros missionários jesuítas, tendo como superior o Pe. Baltasar Barreira, e logo no ano seguinte o Pe. Fernão Guerreiro, na sua conhecida Relação Anual, publicava a seguinte notícia relativa à acção deles no campo de que nos vimos ocupando:

Também fazem muito serviço a Deus no ajudar a descativar muitos escravos, que, sendo livres, os trazem cativos injustamente da terra firme de Guiné os mercadores portugueses, que nisso tratam; principalmente quando consta, por testemunhas, da injustiça de seu cativeiro, que é ou furtando-os e metendo-os por força nos navios, ou havendo-os dos outros negros que injustamente os salteiam e cativam (porque basta virem às punhadas ou arremeter somente um ao outro, sem razão alguma, para o que mais pode cativar o outro e o vender por seu escravo), ou havendo-os também dos tangomaus, ou lançados com os negros, e que andam neste trato pela terra dentro (XII).

Este trecho do Pe. Guerreiro é baseado numa carta de 19 de Abril de 1605 do Pe. Manuel de Barros, o qual acrescenta a informação de que os reis negros recorriam à prova da «água vermelha»para «destruir e vender algum fidalgo poderoso do seu reino», vendendo-lhe também «todos os que tem em casa e todos os de sua geração, suas mulheres, filhos e escravos» (XIII).

A prova da «água vermelha» com a mesma finalidade também é referida pelo Pe. Guerreiro, atribuindo-a ao rei dos Cassangas, dizendo que este, para obter mais escravos, recorria a outras «tiranias a que eles chamam leis»: em caso de morte de alguém, e após a «averiguação» por meio do «jabacouce» do «homicida e feiticeiro» que «o matou e lhe comeu a alma», prisão e venda da sua família, sendo dado igual destino aos familiares dos homens que caiam das palmeiras e morram (XIV). Estas informações são claramente extraídas do Tratado de 1594 de André Álvares de Almada (XV), que, além de outros exemplos, também diz que os Mandingas do rio Gâmbia vendiam muitos escravos, uns obtidos em guerras e juizos, mas muitos outros em furtos, pelo que devia haver cuidado em lhos adquirir, embora se tivessem verificado casos em que eles os mataram após os Portugueses terem recusado comprá-los (XVI).

Em 1606, o Pe Baltasar Barreira produziu uma pormenorizada informação sobre as maneiras como se faziam e traficavam escravos na Guiné (XVII), de que muito resumidamente se dão alguns tópicos.

Não se faz nenhum exame do título do cativeiro, «nem há quem pergunte por ele», já que os armadores aceitam todos os negros que lhes levam, e os reis, para negociarem, cativam negros forros sem se importarem com a justiça ou injustiça de tal acto. Os armadores desculpam-se dizendo que não têm possibilidade de averiguar do titulo do cativeiro, até porque ordinariamente compram os escravos a tangomaus portugueses, seguem costumes antigos e morrer-lhes-ia a maior parte da armação em consequência da demora que haveria em averiguar caso por caso.

Os tangomaus, por sua vez, alegam que não é costume perguntar o título do cativeiro e que correriam risco de morte se o quisessem indagar, o que, aliás, não teria interesse, já que as respostas seriam falseadas, ou pelos vendedores ou pelos escravos.

Na Serra Leoa, os Manes antropófagos venderam muitos sapes vencidos aos Portugueses, tendo posteriormente um capitão da ilha de Santiago dado liberdade aos que nela então viviam. Quando querem escravos para vender aos Portugueses, fazem guerras e assaltos aos vizinhos e utilizam os condenados à morte e seus familiares. Quando um indivíduo se considera agravado de outro ou de parentes deste, quer o agravo seja grande ou pequeno, verdadeiro ou fingido, cativa-o, e por sua vez a família deste exerce represália semelhante na aldeia de onde ele provém. Se um indivíduo se quer desagravar de outro mais poderoso, dá conta disso ao rei, que procede à captura.

Entre «outros modos de cativar com título de justiça» contam-se: quando há prova ou confissão de um indivíduo ser feiticeiro ou ter morto outrem com peçonha; quando um indivíduo tem relações com mulher de rei ou solicita guerra contra ele ou pede às «chinas» que o matem (neste caso, se o rei adoece, o culpado é morto ou vendido, confiscados os seus bens e cativados e vendidos os parentes). Nas averiguações recorrem à prova da «água vermelha», e, quando um que a bebe morre, considera-se isso prova de culpabilidade e deitam mão da «fazenda, filhos e mulheres».

Em caso de morte de alguém, recorrem à «tumba» para averiguar quem foi o feiticeiro culpado, que matam ou vendem, igualmente vendendo os filhos e mulheres.

Nalguns reinos é costume prender e vender aos portugueses as pessoas de reinos vizinhos surpreendidas a roubar frutos. Outras vezes enganam forasteiros, dizendo que lhes vão mostrar os portugueses a quem os vendem, ameaçando matar tais cativos se não lhos comprarem. Os Bijagós fazem muitos assaltos por mar aos povos vizinhos, vendendo os prisioneiros aos portugueses que vão ao seu arquipélago.

A terminar, o Pe. Barreira põe à consideração se não poderia ser dada no futuro licença para comprar todos os escravos sem examinar o título do seu cativeiro, como satisfação pelos muitos roubos, agravos e mortes que os Portugueses têm sofrido na Guiné.

Em cartas de 4 e 5 de Março de 1607 (XVIII), o Pe. Baltasar Barreira completa o seu juizo, nos seguintes termos:

E porque esta matéria [título com que se cativam os negros da Guiné] é muito embaraçada e cheia de dúvidas, por utraque parte, não parece possível averiguar-se quais são de bom título e quais não, o qual digo porque o ordinário é venderem-se os negros por culpas que cometem, ou eles ou parentes e naturais seus, o qual é como lei entre todos, e sem isto não se podem governar bem, vista a sua natureza. E ainda
que pode acontecer algumas vezes que se vendam sem culpa ou que a culpa não parece digna de cativeiro, para o qual entre eles basta qualquer, não é possível averíguar-se isto; e assim sou de parecer que se não pode tomar assento nesta matéria, senão que ou deve correr o trato dos escravos como até aqui ou proibir-se de todo.


Na sua Etiópia Menor, o jesuíta Manuel Álvares, companheiro do Pe. Baltasar Barreira na missão de Cabo Verde e Guiné, igualmente põe em dúvida a legitimidade de muito do que se passava em tal matéria, considerando só haver quatro títulos de servidão justa: venda pelo próprio, venda por pais pobres, guerra justa, pena criminal. Contudo, era frequente o gentio biafada e banhum vender aos mercadores indivíduos com a boca tapada, para não poderem falar, ou mascarados, para não serem conhecidos. Outros abusos eram venderem muitos com títulos de feiticeiros, os tios venderem os sobrinhos (entre os Biafadas), serem cativadas as famílias das vítimas da prova da «água vermelha» e da «tumba» (Banhuns), os Bijagós assaltarem os povos vizinhos, a frequência dos «chais» (sobretudo por adultério) entre os Papéis (XIX).

Outro jesuíta, espanhol, que em Cartagena (América) assistia aos escravos negros, Alonso de Sandoval, dá também, no seu conhecido livro, informações colhidas de capitães e passageiros dos navios vindos da Guíné e que coincidem com as registadas acima pelos jesuítas portugueses (XX).

Não vamos alongar estas páginas com mais resumos de autores consagrados de obras impressas (como o jesuíta espanhol Thomaz Sánchez, referido, aliás, pelos autores do manifesto de Bissau de 1686) ou de informações e pareceres portugueses manuscritos de fins do século XVI e começos do século XVII, já que as opiniões coincidem entre si e com o que já vimos.

O documento de 14 de Abril de 1686, a que atrás nos referimos, encontra-se na Biblioteca da Ajuda (cota actual S4-xIII-1S, n. 094, anteriormente S2-XI-9, n. 94), e tem o seguinte longo título: «Informe y relación que Fr. Francisco de la Mota, vice-prefecto de la misión de religiosos capuchinos de las costas de Guínea y sus compaiñeros hacen a su Majestad que Dios guarde el Señor Rey de Portugal del modo con que los negros de dichas costas y rios se compran y son reducidos a cautiverio.»

No preâmbulo que antecede a «Relación dei echo de los cautiuerios de la costa de Guinea», Fr. Francisco de la Mota - que diz haver sido nomeado vice-prefeito pelo prefeito da missão, Fr. António de Truxillo - informa haver examinado, durante os oito anos em que se encontrava na Guiné, a maneira como eram reduzidos a cativeiro os escravos, concluindo que o «contrato y compras de negros es illicito, pecaminoso e injusto», já que quase todos eram injusta e tiranicamente cativados. O mesmo afirma que não se faz - nem se pode fazer - nenhum exame da justiça dos cativeiros ao comprar os escravos, e que devem ser restituídos à liberdade os que foram adquíridos na Guiné como tais (excepto algum raro cuja legitimidade de escravidão se possa apurar). Dada a gravidade do caso, e o facto de desde há muito o comércio de escravos correr de tal maneira, propõe que seja consultada a Mesa da Consciência sobre a matéria.

O extenso documento é assinado por Fr. Francisco de la Mota e Fr. Angel de Fuente la Peña, levando uma apostilha de confirmação de Fr. Buenaventura de Maluenda. Trata-se dos três últimos missionários espanhóis que continuavam na Guiné, de um grupo de catorze que haviam desembarcado na Serra Leoa em 1678; os restantes haviam morrido ou regressado à Espanha. Estes frades espanhóis não tinham licença das autoridades de Lisboa para missionarem na Guiné, o que originou um conflito de que aqui nos não ocupamos (XXI), tendo o Pe. Truxillo ido a Santiago de Cabo Verde e a Lisboa para solucionar a questão, acabando por serem agregados à sua missão alguns franciscanos portugueses da província dos Algarves, que não se entenderam com os seus colegas espanhóis e rapidamente deixaram a Guiné, indo no seu encalço o Pe. Truxillo, que já estava de novo em Lisboa em Novembro de 1684, partindo para Espanha poucos meses depois e desistindo do propósito de os missionários espanhóis continuarem na Guiné. É, portanto, neste ambiente de conflito e em vésperas de deixarem a Guiné que os capuchinhos espanhóis redigem em Bissau o manifesto de que nos ocupamos, facto a ter desde já em conta para uma melhor compreensão das razões que os poderão ter levado a esse acto; com efeito, a 26 de Março de 1686 já se encontrava em Bissau o capucho português Fr. Francisco de Pinhel, a quem os missionários espanhóis entregariam o hospício e a igreja (XXII).

No documento consideram-se oito áreas geográficas, de sul pa¬ra norte, analisando-se em cada uma delas as diferentes formas de escravização.

Assim, na área da Serra Leoa (ou, mais propriamente, entre o rio de Madrebomba e o rio Ponga), onde viviam manes, bagas, bolões, logos, sossos e limbas, eram três os modos usuais de cativar negros: a) por delitos (chamados chais), incluindo a acusação de feiticeiro (cuja averiguação era feita por sortes ou mediante veneno dado a beber, isto é, pela tradicional e generalizada prova da «água vermelha»); b) venda das crianças limbas pelas mães; c) por assaltos levados a cabo pelos Fulas.

Sobre o rio Nuno as informações eram mais escassas, por lá não haverem estado os capuchinhos espanhóis, mas presumia-se que os negros aí vendidos provinham dos assaltos dos Fulas e dos chais dos Bagas.

O arquipélago dos Bijagós era o maior centro de venda de escravos, obtidos por três maneiras: a) por delitos ou chais (cuja averiguação se podia fazer mediante o sacrifício de galinhas a que eram cortadas as cabeças, vendo para onde caía o corpo); b) venda dos familiares e escravos de um morto pelo seu herdeiro; c) assaltos e roubos de gente levados a cabo pelos Bijagós entre as populações vizinhas do continente e ilhas próximas (era esta a principal origem dos escravos vendidos pelos Bijagós).

Entre os Biafadas compravam-se poucos negros, pois não furtavam muito; eram frequentes os chais. Os autores, por engano, incluem entre os Biafadas o rei do Cabo, que era território de Mandingas; esse rei, bastante cruel, cativava muita gente em guerras.

Na ilha de Bissau, os habitantes obtinham escravos por meio de assaltos por mar, à maneira dos Bijagós, e através de chais.

Entre Bissau e Cacheu, os Balantas e Felupes eram dados a investir as embarcações quando naufragadas, matando os brancos e cativando os negros, vendendo os que antes eram escravos e resgatando os que eram livres.

No rio de Cacheu, os Felupes, Papéis e Banhuns faziam guerra entre si para «amarrar» escravos, obtendo outros por meio de chais.

Nos rios Gâmbia e Senegal, onde comerciavam franceses e ingleses, os missionários não tinham experiência directa, mas, segundo informações colhidas de um francês, a injustiça dos cativeiros ainda ultrapassava a que se verificava nas zonas mais a sul.

E os autores do manifesto, após esta análise, concluem pela injustiça da quase totalidade dos casos de cativeiro e «ser injusto y contra conciencia dicho comercio de parte de los mercaderes, y aun de los que los compran en Europa». No entanto, admitindo poderem estar enganados, pedem a el-rei de Portugal que lhes faça ver o erro ou, no caso de estarem na verdade, que proíba o comércio de escravos. Adiante veremos como os capuchinhos espanhóis não tinham afinal dúvidas sobre o caso, apesar do que escreveram nesta parte do manifesto.

A todas as ilegalidades já apontadas, eles acrescentam ainda uma série de inconvenientes que acarretava o comércio de escravos:

a) Os compradores de escravos são os responsáveis pelas injustiças dos que os «amarram», pois, se não houvesse aqueles, os últimos dedicar-se-iam a outras actividades;

b) Os Bijagós e os Papéis fazem sacrificios de animais em honra dos mercadores, o que é coisa abominável;

c) A abundância de escravos provocara o descrédito do trabalho entre os homens livres;

d) Dada a abundância de escravos, as sociedades não se podem governar cristamente, pois predomina a concubinagem;

e) As «amarrações» provocam o ódio dos parentes dos cativos contra os Brancos, o que impede estes de penetrar pela terra dentro;

f) A sucessão de contínuas desgraças, que os Brancos aceitam como castigo divino pela injustiça do tráfico de escravos.

Havia, segundo os autores do manifesto, a consciência geral de que, se só se comerciassem escravos legítimos, o tráfico terminaria totalmente, pelo que os comerciantes davam como desculpas que não furtavam os escravos e não sabiam se estes eram furtados, que assim os traziam à cristandade, que era prática antiga não proibida pelos reis nem pelos bispos. E os missionários terminam com novo apelo, para que el-rei mande examinar o caso.

Fr. Francisco de la Mota e os seus companheiros não se limitaram a enviar este manifesto ao rei de Portugal, pois chegaram-nos testemunhos claros de que entregaram ou enviaram documentos afins (não exactamente iguais) a outras pessoas e entidades.

Com efeito, La Courbe diz que eles combatiam a escravatura e que fizeram um manifesto em latim que enviaram para Espanha, para Portugal e para Itália, tendo-lhe dado outro para que o levasse para França. Na realidade, no próprio relato de La Courbe encontra-se o testemunho de que ele se utilizou do manifesto, pelo menos na enumeração dos rios e povos para sul do rio Grande e dos Bijagós (XXIII). E, como se viu no começo deste capítulo, igualmente Labat fala do manifesto, dizendo que, no regresso à Europa, os seus autores também o levaram para a ilha Martinica, onde não gostaram dele.

Como era de esperar, também o manifesto se divulgou entre os capuchinhos de Espanha. Assim, o Pe. Mateo de Anguiano, na sua crónica das missões dos capuchinhos espanhóis em África, escrita pouco depois, tem dois capitulos (XIV e XV), intitulados «De los abusos tiránicos que ha introducido el demonio de la avaricia en las partes de Guinea con la ocasión dei comercio de los esc1avos» e «Prosiguese la materia del capitulo precedente y los lastimosos abusos y crueldades que se practican en Guinea», que contêm o mesmo género de informação e a mesma doutrina do «Informe y relación» dirigido ao rei de Portugal. Têm, no entanto, certas variantes e aperfeiçoamentos, o que nos leva a supor que terão base em documento mais desenvolvido, talvez posterior (XXIV).

Em Fevereiro de 1687, os cardeais da Propaganda Fide ocuparam-se de um relatório acerca da escravatura na África ocidental, e que lhes chegara através do núncio em Portugal, a quem o haviam remetido missionários da Guiné. Desconhece-se hoje o paradeiro desse relatório, mas o conteúdo das actas daquela congregação levou a supor que o seu autor seria Fr. Francisco de la Mota (XXV). Podemos agora confirmar que existe notável identidade de informação e doutrina entre o perdido relatório (através do que dele dizem aquelas actas) e o manifesto dirigido ao rei de Portugal e assinado em primeiro lugar por aquele capuchinho (XXVI). Mas o relatório ia bastante além do manifesto, pois daquelas actas se deduz que os seus autores afirmavam haver negado os sacramentos aos comerciantes de escravos que se recusavam a abandonar as práticas ilicitas, diziam praticarem-se na Guiné todo o género de abusos que reduziam a zero o trabalho missionário e solicitavam o poder para impor censuras.

Não desejamos profundar aqui o assunto, até porque não estamos de posse de todos os elementos documentais existentes. É evidente que o manifesto dos capuchinhos espanhóis enviado a D. Pedro II contém doutrina certa, no campo jurídico e moral, mas suspeitamos, com bom fundamento, que não foi apenas a defesa dessa doutrina que levou tais missionários a agir da maneira como o fizeram.

Com efeito, o manifesto contém factos que - são os próprios autores a dizê-lo - eram do conhecimento geral na Guiné, e no campo jurídico não tem qualquer novidade, pois a generalidade dos casos de cativeiro ilícito que apresentam já fora denunciada por juristas espanhóis e missionários portugueses desde mais de um século antes; apenas se pode dizer que especifica mais pormenorizadamente esses casos por áreas e por grupos étnicos. Quando o documento foi redigido, já Fr. Francisco de la Mota devia saber que em breve os capuchinhos espanhóis iam ter de abandonar a Guiné, pois o seu prefeito, Fr. António de Truxillo, já decidira esse abandono mais de um ano antes e havia partido de Lisboa para Espanha(XXVII). Encontrando-se na Guiné desde há oito anos, essa iminência de partida talvez explique porque terão decidido escrever o manifesto, e não antes; e uma passagem de Labat, que tudo faz crer ser respigada no trecho perdido do relato da viagem de La Courbe, mostra que poucos meses depois da data do manifesto eles «pensavam retirar-se e abandonar uma terra tão ingrata» (XXVIII). É também sintomático que se tenham abstido de introduzir no documen¬to em questão qualquer reprovação ou simples referência aos seus concidadãos espanhóis no que respeita ao tráfico de escravos, quando uma parte, pelo menos, dos capuchinhos espanhóis idos para a Guiné desde 1648 embarcara para ai em navios negreiros espanhóis. Têm uma palavra de reprovação para os que compravam escravos da Guiné na Europa, enquanto calam os que o faziam na América espanhola, para onde (salvo curtos períodos) seguia a maior parte dos escravos dessa área, como era do conhecimento geral. Afigura-se-nos que o impulso que levou ao envio do manifesto antiesclavagista ao rei de Portugal não obedeceu exclusivamente a puros intuitos morais, até porque nele se pede, para própria elucidação dos autores, que o caso seja examinado pelos juristas, enquanto no documento afim enviado ao núncio em Portugal com destino a Roma se afirma redondamente a ilegitimidade da quase totalidade dos cativeiros e se anuncia haverem sido recusados os sacramentos aos que persistiam nesse tráfico. No fundo, as velhas rivalidades entre Portugueses e Espanhóis e entre ordens religiosas devem ter tido a sua quota-parte na decisão de enviar manifestos - não inteira¬mente concordantes, como vimos - para várias entidades e para vários países. Mas, tomamos a salientar, não desejamos deixar aqui uma opinião categórica em matéria de tanto melindre, até por falta de elementos documentais; o nosso principal intuito é o de divulgar o texto do notável «Informe y relación» dirigido ao rei de Portugal pelos últimos capuchinhos espanhóis que estiveram em Bissau, o que permitirá a outras pessoas profundarem o assunto.

Não encontrámos qualquer testemunho documental concreto sobre o que D. Pedro II terá feito depois de receber tal manifesto. No entanto, dentro do caderno onde ele está redigido (e que tem a cota 94) vem um papel pequeno, solto, com o n. o 94-a, que, por estes factos e pela sua natureza, constitui muito provavelmente - sem que possamos ter a certeza - a minuta (tem várias emendas) de um parecer redigido por um religioso anónimo acerca da matéria exposta pelos capuchinhos espanhóis. Eis o seu texto:

Voto sobre o resgate dos negros da costa de África.

Vi estes papéis tocantes ao resgate dos negros pela costa de África e o que não era de segredo comuniquei a alguns padres que estiveram em Angola, e aos lentes de Teologia deste Colégio, e todos uniformemente julgaram que Sua Majestade que Deus guarde podia sem [...] a consciência mandar fazer os ditos resgates com as cláusulas seguintes:

Item - que em cada lugar de resgate se ponha um feitor, com um clérigo natural da terra que saiba a língua, homens de sã consciência;

Item - que estes em primeiro lugar examinem exactamente se são os negros justamente cativos encarregando-lhes Sua Majestade muito este ponto e declarando-lhes que não se há-de dar por bem servido por resgatarem mais negros, senão por justificarem com maior cuidado os seus cativeiros.

Item - que os títulos justificados de cativeiros são quatro: o 1º de guerra justa; o 2º dos que de pais e avôs eram já cativos; o 3º dos que estavam para o talho; o 4º daqueles que por delitos graves estavam condenados à morte ou a cativeiro perpétuo segundo as leis ou costumes das terras, não aprovando porém o cativeiro daqueles que o incorreram por furtos leves, ou delitos semelhantes de pouca substância.

Item - que o clérigo tenha grande aplicação a catequisar os negros, ensinando-lhes os mistérios da fé, e baptizando-os, e sem esta instrução na fé e baptismo nenhum se embarque.

Com estas cláusulas satisfaz Sua Majestade a sua consciência e, se houver alguma desordem, ficará carregando sobre as consciências dos tais oficiais, como sucede no governo universal de todo o Reino, em que Sua Majestade não tem mais obrigação que de pôr seus (?) ministros, e castigá-los pelos erros de seus ofícios constando-lhe deles.


Embora tudo pareça estar certo, teoricamente, a colocação de um feitor e um clérigo natural da terra em cada lugar de resgate seria muito difícil na prática, e não veio a verificar-se. Acerca doutro ponto do mesmo documento, o do penúltimo parágrafo, é interessante notar que o bispo D. Fr. Vitoriano Portuense, que iria para Cabo Verde poucos anos depois, procurou dar realidade à catequização e baptismo dos escravos antes de embarcarem, o que pode ser consequência deste e de outros «votos» semelhantes que tivessem sido redigidos a propósito do manifesto dos capuchinhos espanhóis.

Ao fim e ao cabo, o Pe. Baltasar Barreira, no começo do século, tinha razão - não havia possibilidade prática de averiguar a legitimidade dos cativeiros, pelo que o tráfico de escravos devia correr como até então, ou acabar por completo; nada de meias-medidas.

E foi o que, afinal, sucedeu por muito tempo após a saída dos missionários espanhóis de Bissau - tudo continuou como antes, aí e por toda a costa de África.

Só mais de um século e meio volvido o repugnante tráfico seria extinto. Mas para isso foi necessário um conjunto de circunstâncias políticas e económicas favoráveis (em que avultam a independência dos Estados Unidos da América e a revolução industrial na Inglaterra), um grande movimento internacional de opinião pública, a actuação conjugada de vários países e a utilização de poderosos meios materiais.

Ao contrário do que pensavam e proclamavam os capuchinhos espanhóis de Bissau, não bastava coarctar a actuação dos negreiros na parte da Guiné onde comerciavam os Portugueses. Havia muita gente - branca e negra - e muitos interesses - de europeus, americanos e africanos - envolvidos no odioso tráfico, para que ele pudesse cessar com as simples medidas unilaterais que eles preconizavam.

Chegamos, assim, ao fim deste estudo de um curioso período da história de Bissau, terra bem mais falada e discutida hoje em dia por esse mundo fora do que o era ainda há poucos anos.

Seguem-se os textos que ilustram os aspectos apresentados e outros documentos que comprovam as conclusões a que se chegou.

NOTAS
I - J. B. LABAT, ob. cit. t. v, cap. VII, pp. 216-220.

II - ÉTlENNE-FÉLIX BERLIOUX, Andre Brüe ou I'origine de la Colonie Française du Sénégal, Paris, 1874, pp. 151-155. Como La Courbe partiu de Bissau em Fevereiro de 1687, e os capuchinhos espanhóis só depois disso largaram de lá, a referência de Labat ao seu regresso à Europa via Martinica mostra que acrescentou nessa parte o texto de La Courbe.

III - História da Guiné, pp. 140-141,289. Também A. LOURENÇO FARINHA, ob. cit., p. 76, julga que o bispo esteve ligado à atitude dos frades de Bissau, e nós mesmos, algures, caímos em idêntico erro.

IV - Publicada por CARROCERA, in ANGUIANO, ob. cit. II, pp. 297-298. Na última página do artigo referido na nota 6 escrevemos erradamente que o manifesto era de Abril de 1684.

V - In Studia, 3, Janeiro de 1959, pp. 304-305.

VI - O que não é verdade; quanto à África ocidental, veja-se J. D. FAGE, «Slavery and the slave trade in the context of West African history». in Journal of African History, 10 (1969),3, pp. 393-404.

VII - FERNANOO OLIVEIRA, Arte da Guerra do Mar, Coimbra, 1555, 1ª parte, cap. III; há reedições de 1937 e 1969, Lisboa, com comentários de QUIRINO DA FONSECA e de BOTELHO DE SOUSA.

VIII - THOMAS DE MERCADO, Tratos y contratos de mercaderes y tratantes, Salamanca, 1569, 1º Tratado, cap. XV.

IX - LUIS DE MOLlNA, De Justitia et Iure, trat. II, disps. 34 e 35.

X - Biblioteca da Universidade de Coimbra, mss. 465, tls. 14-14 v., publ. por A. BRÁ¬
510, Monumento Missionaria Africana, 2ª sér., III, pp. 442-446.

XI - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Cabo Verde, caixa 6.

XII - FERNÃO GUERREIRO, Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas partes da lndia Oriental, e no Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné {...}, Lisboa, 1605, liv. IV, cap. VIII, fl. 130.

XIII - Arquivo Romano da Sociedade de Jesus, Lusitania, 83, fl. 351 v.

XIV - Ob. cit., cap. IX.

XV - ANDRÉ ÁLVARES DE ALMADA, Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde, cap. VIII.

XVI - Ob. cit., cap. V.

XVII - Academia Real de la Historia, Madrid, Papeles de Jesuítas, ms. 185, nº 15. O documento não tem data nem assinatura, mas duas cartas do P.. Baltasar Barreira, de 4 e 5 de Março de 1607, permitem concluir que este foi o seu autor e que o documento já estava pronto em Julho de 1606. Essas cartas são publicadas por A. BRÁSIO, ob. cit., IV, pp. 220-228, e aquele documento a pp. 190-199.

XVIII - Ver nota anterior.

XIX - MANUEL ÁLVARES, Etiópia Menor, parte 1ª, caps. V, VI, VII, IX e XI.

XX - ALONSO DE SANDOVAL, Naturaleza, policia sagrada i profana, costumbres i ritos, disciplina i catechismo evangelico de todos Etiopes, Sevilha, 1627, liv. I, cap. XVII.

XXI - O assunto é tratado na crónica do Pe. MATEUS DE ANGUIANO editada por CARROCERA, tendo-se o Pe. FRANCISCO LEITE DE FARIA (ob. cit., na nota 50) debruçado sobre ele e mostrado a falta de isenção deste último padre espanhol nas conclusões que apresenta.

XXII - F. LEITE DE FARIA, ob. cit., p. 306.

XXIII - CULTRU, Premier voyage du Sieur de La Courbe fait a la Coste d'Afrique en 1685, Paris, 1913, pp. 212 e 254-255.

XXIV - Nas notas ao «Informe y relación» (F) indicam-se com algum pormenor as diferenças em relação ao texto da crónica do p.e Anguiano.

XXV - RALPH M. WILTGEN, Gold Coast Mission History 1471-1880, 1956, pp. 96-97.

XXVI - Não examinámos as referidas actas, mas baseamo-nos no resumo que delas é
dado na ob. cit., na nota anterior, pp. 97-98.

XXVII - LEITE DE FARIA, ob. cit., p. 302.

XXVIII - LABAT, ob. cit., v, p. 216.



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