quinta-feira, agosto 25, 2005

África Raiz



por Fernanda de Castro (1900-1994)
desenhos originais de Eleutério Sanches
capa de Inês Guerreiro
Tipografia A. Cândido Guerreiro, (Herdeiros) Lda.,
em Setúbal, Rua Serpa Pinto, 20 e 22, Portugal
Dezembro de 1966

Nota de SENEGÂMBIA:
A escritora Fernanda de Castro, de nome completo Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros, nasceu em 1900 e é filha de Ana Teles de Castro e Quadros e de João Filipe Quadros, oficial da Marinha de Guerra.
Em 1913, João Filipe foi enviado para a Guiné, nomeado Capitão do Porto e Chefe dos Serviços Marítimos de Bolama, então a capital. Mãe e filha acompanharam-no.
Foi nesta cidade que a mãe morreu de "febre amarela" e aqui ficou sepultada. Fernanda de Castro, mais de meio século depois, dedicou-lhe o presente poema.


ÁFRICA RAIZ

À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha mãe

África,
no teu corpo rugem feras,
uivam fomes e medos ancestrais,
no teu sangue há marés,
na tua pele há dardos e punhais.

Ventre de Continentes,
és mater e matriz.
ÁSia é semente, Europa é flor,
outros serão essência ou tronco,
tu, África, és raiz.

Dos teus flancos de fêmea fecundada,
nascem florestas, rios e montanhas.

Florestas venenosas de gigantes,
de monstros, de ciclopes vegetais,
de fungos, de landólfias e de orquídeas,
onde pastam manadas de elefantes,
onde flores carnívoras,
sob um céu baixo, de invisiveis brasas,
sugam antenas e digerem asas.

Fios de água, que vertes das entranhas
e te rasgam a pele
como pontas de lança,
como lâminas de aço,
prendendo, laço a laço,
matas, capim, tarrafe, canaviais.

Cascatas, cachoeiras,
furiosos caudais
saltando precipícios,
arrastando pirogas, crocodilos,
abrindo a golpes de água
os leitos abissais
dos Zambezes, dos Congos e dos Nilos.

Montanhas como dorsos de mamute,
gargantas de titans, abismos de neblina,
e na crosta rugosa a lepra das florestas,
as pegadas do vento,
as aves de rapina.
Presença subterrânea
de lavas e de chamas,
de vulcões em potência,
ressonância, rumores
dos rios interiores,
promessas de esmeraldas, de rubis,
de metais raros,
Kilimanjaros
nos roxos da distância.

E a gente, a gente negra?
Ama preta dizia,
com seu menino branco no regaço:

- «Não bate, não, Senhora,
menino não entende
raiva de gente grande»


Mas Mãe branca batia,
e o menino chorava,
o menino sorria,
agarrado à mãe preta.
A gente é como nós,
mais próxima, talvez,
dos bichos e de Deus.
De Deus pela inocência, pela alma,
dos bichos pela carne,
liberta do pecado,
da ideia do pecado.

Tinha Undoko muitos anos
e uma vaca muito velha.
Um dia pôs-se a pensar:
- Como é, como há-de ser,
se vaca velha morrer
antes de Undoko morrer?

Undoko pôs-se a pensar:
- Como há-de vaca matar
pra batuque e choro grande,
prá gentes poder comer,
prá gentes poder beber
dia que Undoko morrer?

Undoko pôs-se a pensar,
pensou, pensou e enforcou-se
antes que a vaca morresse.
- Disse o Branco: - velho louco...

Mas toda a gente comeu,
dançou batuque e bebeu
no choro grande de Undoko.

Sortilégio das noites povoadas
de invisíveis presenças.
Aromas de resina,
que irritam as narinas.
África inteira
cheira
a especiarias, óleos de madeira.

Sortilégio das noites africanas,
com répteis e felinos
a deslizar nas canas,
e o vento a dedilhar
as cordas das lianas.
A aldeia dorme sob a lua-cheia.
Mas dormirá?

Sob a Lua pesada ondula o mato.
Será cobra, felino, vento ou liana?
Bicho não é. Nem flor. Nem brisa. É Ansato,
filha de Mamadi, negra africana.

Cheira a catinga, a almiscar, a banana.
Seus dedos são punhais, bicos de cacto.
Não anda: ondeia como um pé de cana.
Tem voz de colibri, olhos de gato.

Sua lei é o instinto, a força bruta.
Alma não tem. A boca é doce fruta.
Seus peitos e seus flancos negras urnas.

Que pensará? Ninguém sabe o que pensa.
Noite frágil na grande noite densa,
é a presa fácil das fomes nocturnas.

Rasteja a cobra, esvoaça
o jagudi, coaxa a rã.
Luz baça na manhã baça,
tantan.
Mamadú vai à caça.

- Negro Fula, Mamadú,
de que tabanca és tu?

Mangas, cocos e papaias,
acre sumo de cajú.

- Quem te deu tuas zagaias,
quem teceu tua camisa?
- Foi Ansato.
- Mamadú, não vás ao mato,
onça não anda, deslisa.

Rasteja a cobra, esvoaça
o jagudi, coaxa a rã.
Luz baça na tarde baça,
tantan.

- Que levas no teu balaio,
ó filha de Mamadi?
Periquito, papagaio
ou pena de colibri?

- Não é colar, não é pano,
nem pena de marabú.
Não é pulseira, é camisa,
camisa de Mamadú.

- Mamadú, não vás ao mato,
deixa a onça, leva Ansato.

Ansato, bajuda Fula,
como onça, arranha, ondula
e tem olhinho de gato.

Mas Mamadú foi ao mato...
Onça pintada é assim,
fica à espera no capim...

Rasteja a cobra, esvoaça
o jagudi, coaxa a rã.
Luz baça na noite baça,
tantan,

Tantan... Tantan... Tantan...

Tambores africanos,
telégrafo sem fios, sem antenas,
que em minutos percorre África inteira,
quando o medo vagueia
no rasto das panteras, das hienas.

Descem as sombras como asas
de jagudis vorazes.
É a hora das feras...
As palmeiras ondulam e as mangueiras,
carregadas de frutos e macacos.



Cheira a banana, a flor de cajueiro,
e ao ritmo dos tambores, nas clareiras,
dançam Papéis, Mancanhas e Manjacos.

Tantan... tantan... tantan...

Cheira a sangue, a catinga, cheira a suor,
a aguardente circula nas cabaças.
Aves negras adejam em redor
dos despojos sangrentos das pacaças.

O sangue fumegante
embebeda os carnívoros à espreita,
à espera no capim.
A carne palpitante
a chamuscar nas brasas,
atrai as grandes aves de rapina.
Acompanha o festim
Um surdo bater de asas.

Cheira a almíscar, a óleos, a resina.

Facas, zagaias, panos e pulseiras
vão ficando no chão.
Surge, à luz das fogueiras,
uma nudez magnífica,
uma floresta de corolas negras,
de troncos hirtos,
carapinhas duras,
dedos como punhais, unhas de fera,
pupilas minerais,
narinas de pantera.

Tantan... tantan... tantan...

Ventres, pescoços, coxas, tornoselos,
como pedaços vivos dum só corpo
nas convulsões dum parto monstruoso.
África a dar-se à luz a cada instante,
ao ritmo dos tambores,
à luz nua da Lua,
sob a guarda do iran.

Cheira a óleo de palma, a carne crua.
Tantan... tantan... tantan...

E na fornalha viva do batuque,
em volta das fogueiras,
os corpos vão ardendo como achas
de polidas, exóticas madeiras.

Tantan... tantan... tantan...

E o batuque obcecante continua...
Uma Negra em delirio solta os panos
e corre, entre os coqueiros, negra e nua.

Como um deus da floresta,
um deus pagão da Força,
um Negro quebra o circulo fechado,
magnifico veado
atrás da corça.

Tantan... tantan... tantan...

Aquele esbelto caule de palmeira,
que deslisa na selva tropical
com surdos movimentos de animal,
é Fatimata, a negra feiticeira.

Seu corpo cheira a sangue de madeira,
seu olhar é pesado, mineral.
Mastiga, indiferente, a cola e o sal,
e é venenosa e ardente a sua esteira.

Carapinha a escorrer óleo de palma,
nos olhos de gazela um fio de alma,
ouro, serpente, orquídea, leopardo...

Fatimata, cativa de Monjuro,
Magia negra a do seu ventre obscuro,
África inteira no seu dorso pardo.

Tantan... tantan... tantan...

Este é Oloto, o Negro de Mansoa,
nascido no tabanca de Lanhano.
Filho de soba, príncipe africano,
tem uma alma primitiva e boa.

Aos quinze anos matou uma leoa,
e na décima lua desse ano
o pai deu-lhe uma vaca, uma canoa
e uma virgem de sangue mussulmano.

Este é Oloto, o negro pioneiro
da mata virgem, negro companheiro
de Fatimata, a negra cortesã.

Oloto, o que a recebe em sua esteira,
o que dança o batuque a noite inteira
ao som alucinante do tantan.

Tantan... tantan... tantan...

Na franja do horizonte,
uma pálida, argêntea madrugada
vai absorvendo a Lua ensanguentada.

Apagam-se as fogueiras,
vão-se calando, aos poucos, os tambores.
Um ar fresco sacode as bananeiras
e os últimos vapores
das bebedeiras.

Vai romper a manhã.
Tantan... tantan... tantan...

Vai rompendo a manhã.

Regressam ao covil
as feras saciadas.
É a hora do sono dos felinos
e do acordar das multidões aladas
que nos jardins suspensos das ramagens
saúdam a manhã,
cantando, gorgeando,
sacudindo as plumagens.
E este louvor ao Sol de milhões de aves,
sob os templos, as naves vegetais
das florestas fechadas,
é um canto auroral de principio do mundo,
quando o fel do lacrau,
o néctar do narciso,
os estomas vorazes das nepentes,
as maçãs e as serpentes,
eram sinais do mesmo paraíso.

É dia, agora. Um resto de cacimba
amacia as umbelas,
as folhas, os rebentos, as praganas
que saciam a fome das gazelas.

Massa negra e pesada,
desloca-se a manada
a caminho do rio.

Solitário, sombrio,
um búfalo carrega,
cego de raiva e cio.

Ao longo das picadas,
sob as copas das árvores gigantes,
os elefantes
vão abrindo clareiras,
mutilando, ao passar, matas inteiras.

Tapetes vegetais,
folhas mortas de outonos sucessivos,
dissimulam milhões de seres vivos,
uma vida menor que prolifera
e que nada detém,
nem passo de homem nem garra de fera.

Trepadeiras e cordas de serpentes
enrolam-se nos troncos, como braços
de monstruosos corpos sem cabeça.
Atmosfera espessa
de miasmas, de pólen, de sementes.
Nas florestas fechadas,
onde cheira a cadáver, a bolor,
onde o sol não penetra, é só calor,
pousam milhões de insectos
nas rendas das acácias e dos fetos.
Frutos carnudos, vagens dehiscentes,
anteras de veludo,
bagas, drupas, aquénios,
terra negra, fecunda, com milénios
de sucos animais,
diluidos em chuvas torrenciais.

É meio-dia. O sol, a pino,
é metal em fusão sobre as bolanhas.
Pilam arroz e milho, nas tabancas,
as mulheres Mancanhas.

Meninos de café, de chocolate,
com fieiras de contas e missangas,
rebolam-se no chão,
trincam nozes de coco, chupam mangas.

A cadência, o compasso do pilão,
os zumbidos, as moscas, o calor,
mergulham a tabanca
num cálido torpor.

Não há relógios. O que marca o Tempo,
não é o Sol, não é a Lua, a Estrela,
mas a esteira, o tambor, o arroz, a rede,
o sono, o amor, a fome, a sede.

Joaquim de Có, que tinha cem mulheres,
costumava dizer
a Dembo, seu herdeiro,
filho primeiro
de sua irmã Fulata:

- Que mais hás-de querer, ó Dembo,
se tiveres
vacas, arroz, mulheres,
aguardente de cana,
chabéu, mancarra, milho,
e cada ano um filho?

E ao homem grande de Lisboa,
ao chefe branco seu amigo,
com felina ironia:

- Negro é assim, coitado...
E sorria
com seus dentes limados,
aguçados,
de velho canibal,
que tem, só para ele, cem mulheres,
pra ele, Joaquim de Có,
enquanto o chefe branco tem só uma,
uma só.

À tarde, à porta das palhotas,
em torno dos mais velhos,
dos que sabem contar coisas remotas
dos tempos esquecidos,
os mais novos escutam
com os cinco sentidos:

Dia que Deus fez mundo,
fez dois homens igual.
Deu a eles embrulho,
dois embrulhos igual,
e disse: não abrir,
se não eu castigar.
Um deles abriu,
pensou: Deus não vem cá.
Deus foi e castigou.
Ao outro deu caneta,
a ele deu enxada;
depois fez ele preto,
e ele pôs-se a chorar.
Veio então diabo,
sem ninguém chamar,
pôs-lhe mão na cabeça,
fez-lhe festa, festinha,
e o cabelo zangou
e ficou carapinha.


Anoiteceu aos poucos. Nas moranças
adormecem os velhos, as crianças,
e os novos amam, sonham nas esteiras,
na paz da noite inviolada.
Na tabanca
não há porta fechada,
não há chave nem tranca.

Cala-se o dia
e o sussurro da noite principia:
restolho no capim,
passo furtivo,
uivo de hiena,
grito de chacal,
som de tambor nas fronteiras do som,
rugido de leão do Senegal
ou do Futa-Djalon.

E sobre a aldeia adormecida
paira um ar morno, carregado
dum acre cheiro a fumo,
dum ácido perfume
a cajú, a laranja,
dum aroma doce a flores de manjanja.

E de repente um grito corta a noite,
que não é de felino, ave nocturna
ou animal bravio.
Um grito de mulher, que rasga a sombra
como zagaia de acerado fio.
Centenas de asas palpitaram
e o silêncio tornou-se mais escuro.
A noite sem luar é uma parede, um muro...
Outro grito esfarrapa, dilacera
o ar suspenso, à espera.

- Bulo, filha de 8amo,
tem dois filho...


- murmura-se em segredo.

Logo, aceso o rastilho,
corre a notícia como um gamo,
e o medo,
as garras, os tentáculos do medo,
paralisam a aldeia,
a tabanca mancanha,
como patas viscosas
de gigantesca aranha.

- «Bulo, filha de 8amo,
tem dois filho...


e toda a aldeia treme porque um deles
tem diabo no corpo.

Um deles, mas qual deles?
Bulo tem de saber.

Uma mulher pega nos gémeos
e vai pô-los no chão,
bem longe da tabanca,
debaixo dum poilão.
Sem roupa, sem comida, sem calor,
um deles chora.
A medo, espreita-os a mulher,
de quarto em quarto de hora.

Total desesperança,
perfeita solidão
dum corpo mal nascido de criança,
em luta com o demónio,
as feras, a cacimba, a escuridão.

E a aldeia inteira, à espera...
Até que o Tempo
cravou as unhas no mais fraco,
no que tinha o diabo
no corpo ensanguentado,
e o levou para a morte,
como, para o covil, leva a pantera
o gamo esfacelado.

Mussá, o pai,
ergueu nos braços o mais forte,
o que não tinha enguiço nem bruxedo,
e foi levá-lo a Bulo,
e Bulo sossegou,
Bulo já não tem medo,
Bulo tem filho bom.

A mulher enterrou
o que tinha o diabo,
o diabo fugiu,
o diabo estoirou.
A noite acabou,
já é manhã.

Cabeça de vaca,
iran de Mussá,
venceu diabo,
é bom iran.

Ó África, raiz de quantas Áfricas
pelo mundo espalhadas lhe consentes.
África mítica dos mitos
de cinco Continentes.

África negra em cujas veias corre
um sangue denso e grosso.
África impenetrável, obstinada,
desbravada a machado, troço a troço.

África sem tempo, que dos Tempos
como um caudal transbordas.
São luas, vendavais as tuas iras,
há marés no vai-vem das tuas hordas.

Transparente, a manhã
desperta, folha a folha,
a mata adormecida.
Uma estranha sub-vida
palpita sob as folhas amarelas
que as chuvas apodrecem, que as gazelas
adubam ao passar.

Uma franja de noite e de neblina
desmancha-se nas pontas do palmar,
e cai em chuva fina
sobre o pau-sangue, o incenso, a casuarina.

Arco-íris de pássaros
riscam o céu de nácar... colibris,
bicos de lacre, foliotocolos,
melros metálicos, ao sol,
a faiscar,
safiras, esmeraldas a voar.

O Sol vai aquecendo,
desenhando no chão pequenos sóis,
estrelas, girassóis
de ouro novo em fusão.

Corolas transparentes, às centenas,
com brilhos de metais,
desabrocham em asas, em antenas,
sobre espinheiros, bugues, cardiais.
Amarelas, azuis, verdes, violetas,
são flores a dançar as borboletas.

Caules flexíveis,
braços rastejantes
de maléficos troncos,
que se dobram, desdobram em mil dobras,
são landólfias
ou novelos de cobras.

>

A caminho do rio,
sob um céu novo
com restos de cinzento e de lilaz,
macacos, elefantes, fritambás,
abrem pistas de arbustos mutilados.

Mulheres e bajudas
lavam roupa no rio.
Veias de sangue branco, os rios,
quilómetros de veias que percorrem
a terra calcinada,
que alimentam
o arroz e dessedentam
os pés de milho e de mancarra.

Escondida no mangue, uma piroga,
sem remos, sem amarra,
parece um velho tronco,
um crocodilo à tona de água.

De pé, dissimulado pelo mangue,
um negro espreita,
o olhar sombrio,
a alma em sangue.

Ó Sambali,
a tua mágoa
é um caudal
a crescer dentro de ti.

Lavam roupa no rio
bajudas cor de mel, cor de tabaco,
as pernas de gazela,
os braços de liana,
o cheiro de canela.

Sambali, o Manjaco,
sente crescer a fúria, o desespero,
e carrega, carrega, colhe a presa
como animal bravio,
búfalo ou javali.

É tua, ó Sambali,
a virgem que o teu corpo dilacera
como fera
enfim saciada.

Ó Sambali,
a tua alma é doce
como suco de cana,
sumo de abacaxi,
e agora a tua mão
é flor, é colibri
sobre as pernas de antílope,
os braços de liana.
É doce a tua alma,
pluma de marabú a tua mão.
Nasceu porém, contigo, a maldição
dum deus cruel.

Ó Sambali,
nasceu errado
o teu primeiro dente.
Em baixo, ó Sambali, devera ter nascido
e em cima te nasceu
o teu primeiro dente.
E logo a gente
te pôs de lado,
porque nasceu errado
o teu primeiro dente.

Nem cuidado de mãe,
nem mimo de criança,
nem arroz, nem mafé,
nem irmão, nem irmã,
nem um palmo de herança,
nem zagaia, sequer,
nem direito a mulher.

Nem direito a mulher,
ó Sambali,
tu que és um homem
de alma inocente
mas de corpo viril,
e agora olhas no chão a presa mutilada,
como fera acossada no covil.

Ó África dos dias incendiados,
o veneno do sol que te envenena,
é que te faz assim, bárbara, impura,
sanguinária e morena.
Mas tão pura também!

África das manhãs de Paraíso,
com pombas e gazelas e açucenas,
com doces frutos nunca proibidos,
e cantos de marimbas e de avenas.

Tão cândida também!

Ó África, só África,
Ó África madrasta,
África mãe!

o sino da missão
agita o ar parado,
abre oásis, clareiras
de frescura, de paz,
de alegria modesta.

E a gente vai chegando para a Missa,
branca, negra, mestiça,
é-o maravilha!-,
convertidos
Mancanhas e Manjacos,
Balantas e Baiotes,
Papéis e Bijagós,
erguem ao mesmo Deus a mesma voz,
ao Deus omnipotente,
ao Deus que não consente
gente mais gente que outra gente.

Que deseja um Balanta, um Biafada,
que pedirão a Deus Bantuns e Bijag6s?
Talvez não peçam nada,
talvez sintam na carne as chagas de Jesus
e queiram ajudá-lO
a carregar a cruz,
como Jesus os auxilia
a carregar a noite
com que viram o dia.

Como um pássaro doido,
o sino da missão
canta, gorjeia paz,
ressurreição.

Calor,
torpor,
o mercado é uma festa,
a festa do arco-friso Cada cor
veio ao mercado com sua família
de tons e meios tons.

É a festa das cores e dos sons,
carmesins e marimbas,
vermelhos e tambores,
lilazes e dom-dons,
laranjas e tantans,
azuis, verdes, violetas,
nhenheros e corans.

Do Sol escorre luz,
como do favo escorre mel,
como da pele escorre suor
de Furanca ou Papel.
E cheira a fruta: a mangas, a papaias,
a goiaba, a cajú.

E a festa continua
na confusão de Raças
duma negra Babel.
Tudo se vende e troca e regateia,
panos, frutos, cabaças,
arroz, lã de poilão,
zagaias, cofiós,
guardas de prata,
versículos, sentenças do Alcorão,
bonecos bijagós,
máscaras de tagarra,
espadas e babuchas,
balaios e pulseiras,
camisas de Mandinga
- tudo a brilhar ao sol
e a cheirar a catinga.

E as horas vão murchando como pétalas
de enorme girassol.

O dia cai,
vão-se apagando as brasas,
acomodando as asas
ocultas nas palmeiras.
É quase noite. É noite,
acendem-as as fogueiras.

É noite,
a noite espessa, mineral,
do Continente Negro,
em que o silêncio, as sombras, os ruídos,
são como garras, pontas de punhal
cravadas nos ouvidos,
em que as forças do mal,
os demónios à solta,
tomam conta de nós
pelos cinco sentidos.

É noite, noite densa, noite envolta
em vapores de enxofre,
emanações de pântanos,
venenosas essências.
Noite nua, africana... flor de lotus
com pétalas de Lua. .
Pantera a deslisar no tempo,
com pegadas de vento e dedadas de estrelas
na pele oleosa
de cacimba, luar e nebulosa.

Noite africana de silêncio túmido,
replecta de sussurros, de rumores
diluídos no ar húmido:
frémitos de asas e de antenas,
élitros palpitantes,
uivos, risos de hienas,
e a cadência obcecante dos tambores.

Tambores que transmitem as notícias
à tabanca mais próxima, e logo esta
por seu turno as transmite
à vizinha tabanca,
de Papel, Biafada ou Furanca.
E assim, noite adiante,
os tambores, telégrafo sem fios,
atravessam florestas, montes, rios.

- Joaquim de Có morreu!
- dizem de Bula.

Como fogo em rastilho,
a notícia circula.

- Morreu Joaquim de Có!

Soltou-se o nó
que às suas mãos prendia
a fabulosa herança
dos régulos de Có:
mil vacas, cem mulheres,
mancarra, coconote,
cem bolanhas, palmares e poilões,
muitas dúzias de filhos,
dez sobrinhos varões.

- Morreu Joaquim de Có!

E logo, pela estrada,
pelo atalho, a picada,
conhecido ou parente,
ou amigo ou vizinho,
de esteira na mão,
carrega o presente
e põe-se a caminho.

- Morreu Joaquim de Có!

Enterram-se as estacas
e acendem-se as fogueiras
que hão-de assar as cem vacas
do festim.
Cheira a carne esturrada,
a amendoim.

Vão chegando os amigos, os parentes,
e todos com presentes.
para o morto.
Começa a transbordar o rio de aguardente
que não há-de secar
quinze noites inteiras,
com marés, macaréus de bebedeiras.

Joaquim de Có morreu,
mas era velho, «já comeu
mundo suficiente»
- diz o herdeiro,
filho primeiro
de sua irmã primeira,
filha de sua mãe.

Joaquim de Có descansa
na maior das cem casas
da morança,
e as suas cem mulheres
arrepelam-se, choram
e assam porcos nas brasas.

Enfaixado,
enrolado nas bandas,
apertado nos panos
que a primeira mulher lhe destinava
há longos anos,
Joaquim de Có,
o que morreu sem medo,
repousa num palanque
de ramos de arvoredo,
fumado por um fumo de capim
e de nhara-seguedo.

Rotas e desgrenhadas, as mulheres,
as cem viuvas,
revesam-se no choro,
gritam, sujam de lama as carapinhas,
e vão cozendo arroz,
vão assando galinhas.

Lá fora, no terreiro,
o feiticeiro espera.

Quatro negros, em panos escondidos,
agarram no palanque,
tiram o morto do fumeiro,
e aos ombros o carregam,
até junto do velho feiticeiro.
Este pergunta então ao iran:
- Por que morreu Joaquim de Có?
Foi mau olhado?
Alguém que lhe quis mal?
Pecado grande?

Responde então o iran,
e em seu redor o silêncio é profundo:
- Joaquim de Có morreu
porque viveu,
já comeu muito mundo.


O fúnebre ritual
prossegue, noite fora.
Continua o batuque.

Joaquim de Có
repousa agora
sentado numa cova,
tapado
com ramos de árvores, esteiras,
palha de arroz e panos.
Choram as carpideiras,
besuntadas de lama,
e ao seu choro, seus gritos, seus clamores,
respondem os tambores,
o bombalom
do choro grande
de Joaquim de Có.

Levantam-se do chão nuvens de pó.

o cheiro a suor, a gente semi-nua,
o batuque obcecante,
o vozear crescente,
sobem mais à cabeça
de que a própria aguardente.

E a festa continua...

Chega gente, mais gente,
e se é rico o parente
e traz cabras e vacas,
enterram-se as facas,
retalham-se as vacas,
e o sangue corre,
o sangue escorre
da carne ainda quente,
da carne arrancada,
da carne ainda viva
de cada vaca
sacrificada.

Guinchos, mugidos,
sacodem os nervos,
o sangue,
os sentidos.
E a dor das rezes
despedaçadas,
o fumo espesso
das carnes queimadas,
o gosto a sangue,
o cheiro a entranhas,
alimentam a dor,
o luto, o batuque
da gente mancanha.

Quinze dias durou o choro grande,
o batuque de morte
do régulo de Có.
Na presença do iran, do feiticeiro,
de filhos e parentes, do sobrinho
- herdeiro das viuvas e do gado
e outros bens da reinança -,
Joaquim de Có
foi enfim enterrado
no centro da morança,
sem bajuda, coitado,
mas com panos, comida,
zagaia, catana
e aguardente de cana.

E a casa onde morou foi destruída
para que, morto ou vivo,
ninguém, só ele só,
possa morar onde morou
Joaquim de Có.

Ó África, flor negra, flor exótica,
o teu perfume
é álcool que embebeda
e destrói como lume.
E o veneno que exala, que destila
teu geniceu profundo,
ó África despótica,
anda a correr nas veias,
nas artérias do mundo.

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A tua pele escura, lusidia,
sabe a fruta madura
ao meio-dia,
quando o sol, hora a hora, a desagrega,
quando te entregas, lânguida e bravia,
com doçuras de mel
e perfídias de cobra cascavel.

África voluptuosa, aberta ao sol
como flor sem segredo,
mas inquietante, dúbia, misteriosa,
com teus bosques de sombra,
tuas ilhas de medo.

Quem sabe o que se esconde
atrás do muro,
do dia escuro
dum rosto fechado?

Iniciação,
ritual do fanado,
provas de resistência
à sede, à fome, à dor,
circuncisão,
simulacros de lutas,
de batuques de guerra,
mas o sangue a correr,
ensopando o chão.

Magia,
idolatria,
virtudes e vícios.
De quinze em quinze anos,
cruéis sacrifícios
nas matas fechadas.
Rezas,
feitiços,
superstições,
e ao som dos tambores
sinistras danças
de feiticeiros,
cambantadores.

Mas tudo tão verdade!
A noite, o dia,
a flor, o dardo,
o sangue, o mel,
o veneno mortal,
a vida, a morte,
o bem, o mal.
E o sol,
o sol pastoso, incandescente,
a queimar, a torcer, a calcinar
tudo o que existe,
insiste
e quer durar.
Calor demente
que mata pássaros
e endoidece gente.

E de repente
uma nuvem de chumbo tapa o Sol,
como asa de agoiro,
e um vento negro escarva, muge, arranca,
com a fúria dum toiro.

o céu ruge trovões, estoira lumes
nas copas incendiadas,
as rajadas
retalham como gumes
de aceradas espadas,
arrancam arrosais, abrem crateras,
uivando como lobos,
como esfaimadas feras.
Tudo é calor,
suor,
tudo é cinzento,
o céu e o vento.

Cresce o rumor, alastra a sombra
no céu fechado.
Atropelam-se as nuvens,
como bois na manada
quando estala o trovão e o raio assombra.

O tornado
é um cavalo do inferno, à desfilada.

E só então se rasgam,
se desmancham em água,
as nuvens da manada.
Chuva pesada,
em lâminas, em cordas, em torrentes,
que arranca pedras, que destrói sementes.
Chuva abissal,
monstro de água, medusa mineral,
polvo gigante com milhões de braços,
de tendões de cristal.

Depois abranda, exausta,
e pouco a pouco
vão-se calando os uivos
do vento desenfreado,
o rosnar surdo e rouco
do tornado,
e a chuva, extenuada,
já não é chuva mas frescura alada,
pétala de água
a caldear as brasas.

E o Sol, pavão real,
desdobra as asas,
o leque de topázio, de esmeralda,
e de novo o céu brilha,
a terra escalda.

Ó África dos dias incendiados,
o veneno do sol que te envenena
é que te faz assim, bárbara, impura,
sanguinária e morena.
Mas tão pura,
tão cândida também!
Ó África madrasta,
África Mãe!


Este livro acabou de se imprimir durante o mês de Dezembro de 1966, na Tipografia A, Cândido Guerreiro, (Herdeiros) Lda., em Setúbal, Rua Serpa Pinto, 20 e 22



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