domingo, julho 31, 2005

Sobre "A ilha de Bissau na relação da viagem de La Courbe (1686-1687)"

OS FRANCESES EM BISSAU
por Avelino Teixeira da Mota

in "As viagens do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné"
Biblioteca da Expansão Portuguesa
Publicações Alfa, S.A., Lisboa, 1989


o novo capitão-mor era Rodrigo de Oliveira da Fonseca. A coberto de carta de 9 de Julho de 1698, o governador de Cabo Verde, António Salgado, remeteu a el-rei de Portugal três cartas de Incinha Té. Uma delas, sem data, é endereçada ao novo capitão-mor, em resposta a outra que dele recebera à chegada a Bissau (transcrita no apêndice documental, nº XVII). As outras duas, de textos praticamente iguais e datadas de 25 de Maio de 1698, são endereçadas «ao muito alto e poderoso rei D. Pedro meu irmão» (transcrita no apêndice documental, nº XVI) e «ao Senhor irmão António Salgado»; o capitão-mor também é tratado por «Senhor meu irmão»... Não há dúvida de que Incinha Té abundava em sentimentos fraternais...

O escriba destas cartas era menos perfeito que o da interessante carta de 14 de Janeiro de 1697 endereçada ao governador António Gomes Mena e a linguagem é mais arrevezada. Em todas elas ressuma o agravo contra José Pinheiro - «não haverá papel no mundo que eu possa escrever suas coisas ruins». Incinha Té aproveita para dizer que às gentes de Bissau é indispensável o comércio com os estrangeiros, pois a Companhia de Cacheu e Cabo Verde não as fornecia das mercadorias necessárias e pagava-lhes os escravos por menor preço.

Em Junho, Santos Vidigal Castanho escrevia para o governador de Cabo Verde e para el-rei manifestando as suas preocupações com a actividade dos Franceses, que pretenderiam fortificar-se no ilhéu de Bandim; chega a sugerir que se faça um baluarte em Chime, para impedir o comércio dos Franceses com Geba; não era só o
rei de Bissau que pretendia traficar livremente com os Franceses - por toda a parte os próprios Portugueses o faziam (I). O Conselho Ultramarino, em parecer de 3 de Outubro de 1698 (II), não concorda com o baluarte de Chime e entende mesmo que se deve mandar demolir a fortaleza de Bissau, dada a hostilidade dos nativos e as intenções dos Franceses. No entanto, Rodrigo de Oliveira da Fonseca, em carta de 28 de Março de 1699 ao governador de Cabo Verde, entende que deve ser mantida a fortaleza ao menos para protecção dos cristãos (III). Em cartas de 6 e 23 de Março e 4 de Abril de 1699 do mesmo, para el-rei, é noticiada a estada de navios estrangeiros em Bissau e informa-se que os Franceses pensaram em construir uma fortaleza na ilha de Bolama, do que haviam desistido por esta ser demasiado grande, pelo que voltavam as suas atenções para Bissau (IV). Contudo, o capitão-mor de Cacheu, Santos Vidigal Castanho, era da opinião, em carta de 12 de Maio de 1699, que se demolisse a fortaleza de Bissau, deixando apenas um baluarte (V).

Por carta régia de 13 de Março de 1700 foi autorizado o comércio com os estrangeiros em Bissau, desde que pagassem 10% na alfândega (VI); era uma tentativa para contemporizar com a situação existente de facto, mas não deu resultado porque eles se eximiram a pagar esses direitos.

Em Março de 1700 apresentou-se em Bissau, com vários navios, André Brüe, director da companhia francesa, a fim de construir uma feitoria, para o que conseguiu a concordância do rei Incinha Té. O capitão-mor, Rodrigo de Oliveira da Fonseca, protestou, e o caso foi estudado em Lisboa e tratado entre as duas cortes (VII).

El-rei acabou por dar ordem para ser demolida a fortaleza de Bissau, por carta de 12 de Abril de 1702 (VIII). O Conselho Ultramarino, em 28 de Novembro de 1707, foi do parecer de que se não devia gastar mais dinheiro em Bissau, já que ele faltava mesmo para as necessidades de Cacheu (IX), e el-rei despachou reiterando a ordem de se demolir totalmente a fortaleza, o que se fez no ano seguinte. Portugal estava em guerra com a França desde 1703 (até 1713), por causa da sucessão do trono de Espanha.

O bispo D. Fr. Vitoriano Portuense morrera, na ilha de Santiago, em 21 de Janeiro de 1705; já não teve o desgosto de ver o último acto da derrocada dos planos que tão ardorosamente sustentara nas suas viagens de 1694 e 1696-1697.

Não interessa aqui analisar o que depois se passou em Bissau, bastando referir que as esperanças dos Franceses também acabaram por se desvanecer. Bissau era um osso duro de roer. Em 1718 o capitão-mor de Cacheu informava que os Papéis se opunham à pretensão dos Franceses em construir uma fortaleza; em 1723 naufragou um navio em que levavam materiais para esse efeito e em 1739 o capitão-mor de Cacheu obtinha do rei de Bissau a reiteração do propósito em não deixar fortificarem-se os Franceses no local. O seu comércio acabou por diminuir, e parece terem tido grandes prejuízos, em razão de empréstimos que não conseguiram cobrar de portugueses e gentios. Em 1747 já outro rei de Bissau queria ser baptizado e o capitão-mor de Cacheu preparava-se para ser o padrinho...

O problema de Bissau, nesta época, parece ter, afinal, girado à volta das condições do comércio. Não só os Papéis, como os próprios portugueses da ilha e de outras áreas, queriam comerciar livremente com os navios de todas as nacionalidades, dado que os estrangeiros lhes levavam melhores mercadorias e a preços mais convidativos. E os Papéis não se opuseram à presença dos Portugueses - missionários e comerciantes - nem à construção da fortaleza por eles, o que negaram aos Franceses.

À actividade dos Franceses em Bissau desde o penúltimo decénio do século XVII se deve a recolha de um conjunto de interessantes informações sobre a área, as quais vêm publicadas no tomo V da Nouvelle Relation de l'Afrique Occidentale, de Jean-Baptiste Labat (1728). Infelizmente, Labat baralhou as fontes de que se serviu e encabeçou em André Brüe viagens na realidade efectuadas por La Courbe, pelo que o seu livro tem de ser utilizado com a maior cautela.

Pôde P. Cultru, nos começos deste século, identificar o texto original da viagem feita por La Courbe desde o rio Gâmbia a Bissau em 1686-1687; julgamos apropriado transcrever adiante (E) a parte mais substancial da descrição de Bissau, pois ajuda a compreender o meio e condições em que D. Fr. Vitoriano Portuense realizou as suas viagens.

O manuscrito de La Courbe encontra-se truncado, faltando-lhe precisamente o respeitante ao começo da estada em Bissau, que se deve ter verificado no terceiro ou no quarto trimestre de 1686. Apesar disso, o trecho inicial que sobreviveu permite esclarecer uma questão sobre a qual se têm produzido afirmações menos correctas, como se verâ a seguir.

NOTAS
I - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Cabo Verde, caixa 6 (cartas de 7 e 10 de Junho de 1698).

II - Arquivo Histórico Ultramarino, códice 478, Consultas, fls. 121-123.

III - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Guiné, nº 269.

IV - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Guiné, nos. 266, 268 e 270.

V - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Guiné, nº 272.

VI - Publicada por SENNA BARCELLOS, ob. cit., II, pp. 151-152.

VII - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Guiné, nº 285; códice 19,
Consultas Mistas, fls. 413 v.-414 V. JEAN-BAPTlSTE LABAT, Nouvelle Relation de I'Afrique Occidentale, t. v, 1728, cap. III, pp. 84-114, e cap. VII, pp. 195-220, descreve a estada de A. Brüe em Bissau, e no cap. VIII, pp. 220-229, as negociações na corte de Portugal, onde se deslocou o próprio A. Brüe.

VIII - Arquivo Histórico Ultramarino, códice 489, Cartas para os Governadores, fl. 182 V.

IX - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Guiné, nº 290; códice 478, Consultas, fls. 164 v.-16S.



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