domingo, março 20, 2005

Guinéus (4/16)

LOUVAM-SE IRÃS



Passam os dias quentes, sufocantes com rasto a perdurar um hálito de forno pela noite adiante e o ambiente toma-se insuportável. Mais um convite ao repouso para pessoas que por índole detestam pressas e preferem a modorra.
Porém, hoje, dia de festa, abre-se uma excepção...
A noite está escura, governa a treva, num extremo singular do inigualável luar das noites africanas. Ali, na povoação mancanha, iniciou-se o batuque monstro para folia dos homens a celebrar, numa homenagem aos irãs, os resultados transcendentes do ano agrícola. Como bons pagãos, importava agradar aos tótemes.
No terreiro, os corpos movimentam-se em dança estranha. Há passos sinistros, de corpos arqueados, bamboleantes, desengonçados, como que a desarticularem-se; cabeças que ora descaem, ora são bruscamente atiradas para trás; braços pendentes, em oscilação amortecida, e pernas que se requebram ao jeito de pedestrianistas que vão acabar exaustos.
De súbito, a tamborilada acelera para andamento desenfreado, a galvanizar as figuras daquele ballet primitivo em evoluções grotescas e desvairadas. Tal acesso, porém, não podia manter-se. Quebra, abranda, para voltar ao ritmo de «faz que anda mas não anda».
O ritmo dos tambores sobrepõe-se ao tropel e repercute distante. Altera a quietude do mato, compromete a sonolência da povoação biafada a uns escassos quilómetros e sobressalta os antílopes que vagueiam na hora ideal do pasto, saindo do mato espesso para as bolanhas a procurar as bainhas tenras do capim.
O mato devolve os rumores alterados em sonoro eco de caverna. A povoação biafada não refila nem aplaude. Dorme, decerto, como se o conjunto humano houvesse sido infectado pela tsé-tsé e entrasse já na fase sonolenta que crisma a terrível doença. Os antílopes, por sua vez, não devem confiar. Estão atentos, nervos motores em pressão, a aguardar ordens de comando do instinto de conservação, no receio de outras garras mais de temer que as dos felinos...
Gam-Major regorgita de gente da tribo mancanha. Vieram peregrinos de todas as povoações espalhadas pelo Quinará e litoral do Cubisseco. Pela tarde, algumas canoas embocaram nos calhaus ovalizados e polidos pelas águas do Bolola, brando por índole mas que sabe açoitar com arremessos de oceano quando o vento sopra rijo lá do arquipélago dos bijagós. Eram patrícios, irmãos de raça, com vida fixa nos subúrbios da antiga capital, agora reduzida a vilória pacata.
Os festeiros concederam-lhes um acolhimento especial, espalhafatoso. Cumprimentos a torto e direito e algazarra própria de campos de bola quando o couro ultrapassa a marca balizada. Os cachorros, a concorrerem na homenagem, desataram a latir sem agressividade, varando a aglomeração para cabriolar cá e lá, enquanto a coluna em formatura irregular entrava na Meca da orgia. Encabeçava-a um velho, descalço, todo ufano do seu sobretudo de inverno e chapéu de feltro à europeia, como quem alardeia ares de alta patente tribal.
Um grito em uníssono, prolongado, encerrou este pormenor e toda a gente correu de seguida para o lugar destinado às razias características dos choros e dias excepcionais. Os terçados dos açougueiros entraram a operar numa autêntica manada e as vacas ao encaixarem as cutiladas mugiram lamúrias e esganiçaram-se em berros de revolta, logo acolhidos com risos e impropérios dos carrascos e de todo o tribunal glutónico.
Como réplica, tinham que corresponder ao labor sobrenatural dos irãs aceites como obreiros de todas as benesses do ano, vindas em canto chão, sem ralações. As chuvas tinham caído densas e intervaladas como convinha para o medrar da oleaginosa. A colheita fora extraordinàriamente abundante. O mundo, ansioso por gorduras, garantiu mercados e cotações altas. E, como fecho, ponteiros e lojeiros espalhados pelo mato entraram de roldão em sequiosa disputa pela oleaginosa. Parada daqui, parada dali, em controvérsia comercial, a cotação do amendoim foi subindo, subindo... O produtor não usou retóricas de vendilhão nem subterfúgios de leiloeiro que explora o lance mais vantajoso. Calmo, pacientemente oportuno, entregou o amendoim pelo melhor preço, alcavalado ainda pelo tradicional lava-remo, esse presente que se antes era terreno escorregadio tornou-se agora quase um direito sem deixarem de observar o fiel da balança... Tudo num feixe, como vistoso ramo de vantagens, convenceu o mancanha de que nisso andava dedinho de irãs.
Alguns mais dados ao trabalho, ou senhores polígamos que atiraram para as lombas número apreciável de mulheres e crianças, pasmaram de satisfeitos com a rendosa conversão do amendoim em notas de quinhentos, das novas. Vincos desfeitos, sobrepostas em resma, eram escondidas religiosamente e, de noite, pelo seguro, lá iam para debaixo da esteira como minúscula almofada, tementes das costumadas rapinas sub-reptícias dos balantas do Enxudé e arredores. Antes que as pálpebras se cerrassem, pensavam em gozos futuros com libações nas lojecas, ou palpitavam aquisições de mais mulheres ou mais vacas, afinal o que mais importa ao latifúndio gentílico.

*

A farra prossegue. Os tantãs, os cânticos e a algazarra continuam atirando vagas de som para o ar. Na varanda da casa de adobes, chegada ao porto, Antunes estirou-se na maca de corda suspensa dos pilares de madeira do alpendre. Embora ali vibrem mais as sonâncias do terreiro a sopear-Ihe os nervos, prefere-o ao ambiente morno do quarto. As pontas dos sucessivos cigarros reverberam na treva como fugazes fosforescências de pirilampos. Recorda, talvez, o seu passado de luta, privação e incerteza, lá na ilha de Bissau, a contas com os insubmissos nativos.
Estabelecera-se em Gam-Major há uma trintena bem puxada e nada tinha de seu. Outros, do seu tempo e até muito posteriores tiveram sorte. Ele não. Passaram sucessivas campanhas durante as quais comprou muitos milhares de toneladas de amendoim e vendeu tantas jardas de tecido que chegariam para hipotética passadeira a estender até à sua terreola, lá tão longe, aconchegada ao Douro, de onde saíra cheio de sonhos. Montanhas de dinheiro - dos empréstimos - lhe passaram pelas mãos, mas este logo se escapava para os bolsos de origem. A África, das fortunas fáceis para uns, nunca lhe sorrira como para tantos outros, como ele. Preso dos seus pensamentos e como que embalado pela insistência da barulheira do terreiro, acabou por adormecer na cama de corda.
Caminho acima que dá para a tabanca com vistosa vedação viva de touças de cajueiros, um grupo de mancanhas tagarela qualquer despique que o vinho espevitou. Nos terrenos baixos da beira-rio os batráquios fazem suspensão de coaxos e as cigarras interrompem a impertinente cegarrega, num indício de que o novo dia está por pouco.
Do mato, adiante, vêm sinais de rebuliço. Uma gazela berra num tom que não é o de localizar-se aos filhotes. A macacaria que estava hospedada nos troncos altos, desanda em fuga a provocar grande farfalhada vegetal. O leopardo, quando quer, não receia a proximidade e barulho humanos e deve andar a fazer a sua caçada. Gazelas e cabras de mato, com o papo cheio, julgam-se resguardadas dentro das teias da ramaria e arbustos espinhosos ou sob festões de lianas. Esquecem que o felino é subtil a preparar o golpe e que, depois, é uma questão de agilidade, de força e de poder de afiadas garras que rasgam sulcos mortais. A gazela berrou de novo - berro de agonia, de quem acaba. Dos símios, nem sinal. Segue-se o silêncio que encobre mistérios e a pausa é aproveitada pelos animais na expectativa dum perigo que não cessa jamais.
O desassossego no mato não implica forçosa intervenção humana, pois, ali, até os vegetais se degladiam, embora aparentem dignidade naquela quietude que não é absoluta. As essências florestais, de arcaboiço avantajado e que sobem alto, têm o seu lugar ao sol garantido, mas as lianas, apesar da sua fragilidade e duma seiva sem préstimo, não refreiam ambições e, como recurso, enroscam-se aos fortes do seu reino, com jeitos de serpente, subindo sempre, em curso sinuoso ou em aparatosos festões, até que acabam por surgir lá em riba para gozarem com primazia de parasita, as carícias que a luz-ouro do Sol oferece generosamente para todos.
A gente do terreiro não deu pelo rebuliço do mato e ignorou o fim da pobre gazela como prato único do felino. O clarão rubro das fogueiras envolve de luz a copa das mangueiras e laranjeiras, tela descomunal onde se movem sombras da turba que dança e canta, fala e grita, come e bebe. É comer e beber, até empanturrar. Não se guarda para o amanhã dos triviais arroz, fundo e óleo de palma, pois carne e vinho, após transformados em pasta é hulha que insufla energias a estimular sensualidade. A coberto da confusão, esgueiram-se como quem não quer a coisa para dentro das palhotas, ou procuram os melhores esconderijos verdes onde dão largas aos instintos.
Os tambores continuam impondo cadências. O mulherio sobressai nos coros onde raramente a eufonia preside e os que se revezam no terreiro vão desenhando passos ora molengos, ora de pesadelo também ritmados pelas palmas dos circunstantes.
O tropel, no conjunto, é já menos denso. Há indícios de cansaço. A aragem começa a refrescar o ambiente. Uma ou outra rola escondida nos poilões ensaia o seu canto, em sequência característica.
Não tardará que os corpos se acolham às esteiras de fibras entrançadas, numa prostação até dia pleno, para depois se refastelarem nas sombras de influência calmante. A debandada está prevista para a segunda metade do dia que vai surgir dentro em pouco.
A estação pluviosa está à porta e não é conveniente perder tempo. Há que recuperar terrenos abandonados à vegetação arbustiva, ou rapar mais uma nesga de selva que é reduto de humidade, nicho de répteis ou viveiro dos temíveis mosquitos e mosca-brava que lhes transmitem a malária ou a doença do sono.
Escusam-se ao machado por que consideram o golpeio «trabalho cansado». Um fósforo basta e, em coisa de minutos, o fogo tudo desvasta, a eito, ficando somente um ou outro esqueleto arbóreo de uma espécie mais alentada com duvidosa renovação de seiva. O mais... só cinza - cinza branca, de todos os cinzentos a acabar no negro - e feito o rescaldo aguarda-se as primeiras chuvas que o solo receberá como mata-borrão. Amolecido, fofo, facilita sobremaneira a cava dos sachos gentílicos, semelhantes a alfaia mimosa de hortelão.
O estímulo dos êxitos agrícolas colabora com a iniciativa e directrizes administrativas a impelir o mancanha a trabalhar maiores áreas de solo com o fim de obter-se maior produção e adopção de outras culturas. Embora espevitados, a evolução emperra e o movimento não é superior ao do caracol que não tem pressas de atingir o cardo, que se distrai pelo caminho, convencido de que não o molestam. Aguardam-se mais benesses do poilão secular que viceja algures no mato, ou do madeiro carunchoso e amorfo espetado nos subúrbios da povoação. Possivelmente, falando para dentro, fazem votos no desejo que o poder omnipotente dos deuses provoque a escassez de oleaginosas por esse mundo fora e que os comerciantes locais não se lembrem de fazer acordos para finca-pé nas cotações dos produtos e acabem de vez com o gracioso lava-remo, já tão em desuso.
No terreiro feneceram, por fim, as toadas de louvor a irãs. Começa a clarear e a folhagem do arvoredo, até aí quieta, entrou a bulir com a brisa matinal.
Antunes espreguiça-se na cama de corda. Pela noite fora, não deu pelo cacimbo a cair suavemente em poeira aquosa, que enferruja os ossos, nem tão-pouco pelos estiletes dos mosquitos a injectar-lhe mais parasitas no seu sangue enfraquecido. Tributo da sua triste aventura africana, com desfecho semelhante ao de muitos outros que para lá abalaram cheios de sonhos...
O terreiro está deserto. Entre as duas alfarrobeiras, no chão, uma tarja circular de terra solta é um indício. Um tronco de pau-de-sangue quase a toca como tangente. Ao lado, dois tambores. Um compridão, outro vulgar e em redor há ossos descarnados e sujos de terra. Mais lá, uns montes de cinza e algum capim que ficou por queimar.
Um garoto, nu, surge de uma palhota com os braços em ângulo, erguidos à nuca. Faz cara feia a espreguiçar-se, realçando, ainda mais o seu umbigo saliente com forma de beringela. Chega-se a um dos tantãs e observa em redor como quem receia algo. Por fim, decide-se a tamborilar, em crescente, na pele retesa a pretender atinar com o ritmo característico da mais primitiva música africana.
Entretanto conseguia, sem o querer, despertar os exaustos para novo dia de regabofe, pretexto pagão de louvar a faceta generosa dos muito respeitados e temidos irãs.


Na foto da esquerda, dançarino bijagó, da ilha de Sogá, antes de iniciar o bailado que representa cenas da vida do "peixe-verga" (tubarão-martelo) na qual é acompanhado por uma bateria de tambores
Na foto da direita, tocadores de tambor da Ilha de Canhabaque, no acompanhamento da dança ritual "vaca-bruto" (gado bravo)

Espectacular imolação de uma vaca, em cerimónia ritual do povo bijagó

Frutos pendentes de ramadas de palmeiras? Não! Sim, profusão de ninhos de pássaros-tecelões, os quais entretecem habilmente com finas tiras de capim os seus baloiçantes ninhos

O "bombolom" - tronco cavado, com caixa de ressonância - é o instrumento usado nas comunicações entre as aldeias nativas. A graduação dos sons das pancadas representa o vocabulário gentílico. Em cima, um instrumento balanta; em baixo, um bijagó



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