terça-feira, março 22, 2005

Guinéus (14/16)

SAJÁ CAMARÁ



Em todas as raças que povoam o Universo, há homens predestinados a vencerem. Contudo, o convencionalismo, ou o interesse das sociedades, negam-lhes, muitas vezes, acesso aos melhores degraus da valorização humana, passando despercebidos os seus êxitos pessoais e o direito ao pódio que lhes seria devido.
É, na escala humilde, o caso de Sajá Camará, lavrador africano, componente do grupo étnico biafada.

É lá adiante, na estrada que vai para a Gã- Mitília, em Salquenhé, circunscrição de Fulacunda, que ele vive. Sajá Camará ufana-se de ser um lavrador a sério, dos que trabalham a terra. Ei-lo que exterioriza a sua satisfação em sorriso abertoe lhano quando qualquer pessoa ou especialmente a autoridade administrativa lhe reconhecem esse título ao falarem do seu sucesso agrícola.
Foi há 24 anos. Mandingas e biafadas do Quinará, e os fulas do Forreá, foram acossados pela fome. Nesse ano a fraca pluviosidade não saturara a terra. Dir-se-ia não ter havido estação das chuvas. A mancarra, mal que germinada, quedou a engelhar-se de sede. Os raquíticos milharais não chegaram a embandeirar-se de espigas; e nos pequenos arrozais de sequeiro e nas bolanhas as hastes da gramínea tombaram murchas sobre a terra ressequida. Depois, mais tarde, e a completar a calamidade, a borracha não tivera cotação e o gentio desanimado não procurou a seiva coagulante das landólfias que se desenvolvem prodigiosamente no calor e humidade da selva.
Faltou a mancarra: faltou o dinheiro; faltou o milho e o arroz: faltou o pão de cada dia. Mas o mato mais uma vez daria os alimentos de recurso. Os recantos verdes foram sôfregamente esquadrinhados na colheita de inhames bravos, outras raízes comestíveis e frutos silvestres como mandiple, farroba, fole e manganaz. E, desta vez, as abelhas selvagens foram perseguidas atrozmente. As suas colmeias, localizadas dentro dos troncos carcomidos das árvores idosas, foram assaltadas pelo fogo assassino. Matou-se, ou pôs-se em fuga os laboriosos himenópteros para uma fácil rapina dos favos recheados de meL
Colocaram-se armadilhas nos esconsos do mato para surpreenderem os pequenos antílopes e recorreu-se com mais insistência à táctica destrutiva das queimadas de cerco como maneira de caçar. Nas tocas do chão introduziu-se palha a arder, fumegando, para obrigar a virem à superfície, cambaleantes, quase asfixiados, os pequenos roedores cuja carne tinha o destino do braseiro cafreal.
A estiagem surgira como factor decisivo para Sajá Camará consumar a ideia que o preocupava desde há anos, quando fizera o reconhecimento dos baldios de Salquenhé. Seduziram-no essas terras ricas, de mato pouco denso, perto do Rio Gambinta e das povoações de mancanhas e balantas de Bunaússa, Flora e Bissássema. Enquanto no mato se fazia a busca sequiosa de alimentos e os homens-grandes ficavam nas sombras das povoações a esmolar a protecção de Alá, ele decidiu-se a abandonar a sua povoação e os matos que testemunharam a sua mocidade mexida e saudáveL
Fugia à ancestral preguiça de muitos da sua raça, tão acomodatícios às sestas intermináveis nas sombras acolhedoras das árvores frondosas, nas demoradas ladainhas do Corão, nas longas e inúteis conversas no bentém ou, pela noite fora, enquanto o sono não vencia, em evocações saudosistas do período de hegemonia da raça biafada, antes da implacável avalanche de mandingas e fulas, vindos do norte.
Sajá seguia religiosamente os conceitos trazidos pelos mouros maometanos, mas enquanto os seus patrícios aguardavam com pachorra e fanatismo os favores divinos, ele preferia buscar a vida animado pela fé, a sua fé simples e sã, sem feiticismos.
Com a abalada ganhou a animosidade de toda a povoação, descrente do seu êxito e mal disposta com a sua rebeldia. Os velhos, exteriorizando solenidade de juízes infalíveis, afirmavam que Sajá regressaria, vencido...
Até o Dabó, o seu rival, sempre a amesquinhar as qualidades de trabalho de Sajá, pôs em prática certos ritos reminiscentes dos catálogos dos antigos feiticeiros, para que a aventura de Sajá terminasse em desgraça.

Mas nada disso sucederia!
Sajá abandonou a sua Conto-ó. A vontade sobrepôs-se ao sentimentalismo; o espírito de decisão repudiou as tradições do clã contrárias ao isolamento; a sua fé em Alá escudou-o para não temer os maus agoiros e bruxedos do Dabó... E Famatá, a linda mandinga, embora impressionada por tantos vaticínios maus dos ressentidos, não hesitou em acompanhar o marido. Com ele e Sandé, o filho ambicionado que Deus negara a Sajá no seu primeiro casamento, e embora com a saúde abalada, decidiu-se a acompanhar o marido nem que fosse em penosa jornada até ao longínquo chão dos seus avós, lá longe, em Tombouctou, perto do Níger.
Chegados a Salquenhé, Sajá teceu algumas placas de carentins destinados a servirem de paredes da sua nova habitação, encorduou fibras para ligarem toda a estrutura, fez a montagem do esqueleto da cobertura e procurou, no mato, os mais jeitosos troncos de pau-ferro destinados às pilastras do alpendre em redor da palhota. Famatá, por sua vez, também lhe coube ir à lala ceifar a palha que, posta em camadas, cobriria a habitação provisória. Depois uma queimada enorme abriu vasta clareira e as árvores resistentes às chamas foram demolidas com cutiladas possantes do terçado de Sajá confiado na legislação vigente que faculta ao nativo - só ao nativo, e bem - a ocupação agrícola dos baldios, sem quaisquer formalidades.
Caíram as primeiras chuvas e cheirava fortemente a terra. Quando a chuva parava e os dias eram luminosos com nuvens brancas encasteladas num indicativo de trovoada, Sajá com a mulher empunhavam sem descanso a enxada de cabo curto dos mandingas. Revolveram a terra e enterraram os detritos vegetais e o adubo animal colhidos ali a dois passos. Seria a sua primeira lavra de mandioca.
Vem logo a primeira contrariedade. Os mancanhas da povoação vizinha vinham reparando com sorrisos irónicos que Sajá e a mulher colhiam o excremento das suas vacas, levando-o para a terra onde lavraram o mandiocal. «Mandioca feita com bosta de vaca não presta nada» - diziam entre sorrisos e gargalhadas irónicos.
Um magote surpreendeu-os com grande barulheira. Homens, mulheres e crianças surgiram em grupo em medonha arruaça. Os garotos chegaram a arremessar algumas pedras. O casal retirou-se aparentando indiferença. Na palhota, entre lágrimas e expressão desgostosa, Famatá implorou ao marido o imediato regresso a Conto-ó. Abandonariam tudo. Começariam nova vida. Sajá acalmou-a e passou a fazer, só, o transporte das bostas para a sua estrumeira, não dando ouvidos aos dichotes dos mancanhas que não viam com bons olhos a instalação de um casal doutra raça perto da sua povoação.
Mas chegou a primeira colheita. Da povoação mancanha vieram alguns velhos felicitá-lo pela boa produção e qualidade dos tubérculos. Poucos dias depois vieram outros, subtilmente, tirando o chapéu de folhas de palmeira e erguendo as mãos juntas ao ombro esquerdo em sinal de respeito e de que estavam necessitados - coitados - como diziam. Pediam mandioca a crédito para pagar quando colhessem a sua mancarra. Outros se chegaram, cada vez mais, a pedir mandioca por empréstimo e venda. Os mais ardilosos chamavam-no de parte e, como em segredo, denunciavam que os autores das arruaças quando ele e a mulher andavam na colheita de estrume, estavam na tabanca e alguns se haviam ausentado para Có, sua terra natal.
Sajá conhecia por tradição a subtileza mancanha e compreendia a mudança de procedimento, agora, depois da colheita...
Nos anos seguintes as lavras foram muito ampliadas. Novas clareiras foram conquistadas ao mato. Sajá contratou balantas de Bissássema para lavrarem a terra. Os mandiocais cresciam viçosos e a produção aumentou de ano para ano. Novas cedências a crédito e a dinheiro para os mancanhas. Os balantas trocavam um bushel de arroz por outro de mandioca. Logo começou a colocar nas operações comerciais a mancarra e o arroz que obtinha por troca. Prosperava. A notícia corria por todo o Quinará, Cubisseque e Forreá. Parentes vindos de Conto-ó e Gangénia, instalaram-se em Salquenhé para trabalharem por conta própria, atendendo aos seus incitamentos. Construíram-se mais palhotas para sete famílias. Ia surgindo a povoação conhecida agora por «Ponta de Sajá».
Nunca lhe faltou o apoio moral e o auxílio das autoridades da circunscrição. O lavrador africano mais de uma vez foi acossado pelos invejosos e caluniadores que o denunciavam de especular nos períodos de escassez, vendendo o arroz e a mandioca a preços exagerados. O apuramento dos factos não abonava os acusadores, alguns destes devedores a Sajá pelo arroz ou mandioca fornecidos a crédito. O administrador vindo de Fulacunda e o chefe de posto de S. João nas suas visitas periódicas à Ponta de Sajá, encontravam o lavrador com a família e os trabalhadores balantas nos mandiocais ou arrozais, ora limpando mais terreno, ou a plantar mais pomares. Havia movimento na povoação. Mulheres a pilar arroz, a transportar água e no trato dos animais; aos garotos interrompiam-se-lhe as traquinices porque lhes cabia varrer as ruas da povoação e alpendre das palhotas ou faziam a colheita de castanhas nas sebes de cajueiros; homens melhoravam a cobertura das palhotas ou substituíam os carentins dos cercados. Nas lavras ou nos pomares, Sajá e os seus colaboradores estavam quase sempre ocupados na cava, na limpeza ou na colheita. Só os homens-grandes passavam as longas horas do dia à sombra dos alpendres...
A terra fofa da propriedade revolvida pela enxada para rotação de cultura registou as pegadas de governadores, idos ali em visita de observação e curiosidade. Sajá sentiu o aperto de mão estimulante desses homens que retiravam bem impressionados. Após essas visitas crescia sempre mais um pouco o apoio administrativo que aliás nunca lhe faltou nos períodos difíceis, quando os seus inimigos mancanhas e ponteiros - comerciantes civilizados - o apodavam de especulador e agiota, pondo a inveja ao serviço da calúnia, processo demasiado vulgar nos meios civilizados dos trópicos.
Mas ainda desta vez os invejosos não medraram, o que quer dizer, não venceram.
Decorreram 24 anos. A Ponta de Sajá, hoje concessão, é também uma propriedade agrícola a sério que desmente a quase totalidade das propriedades dispersas pela província. Estas só o são nos rótulos concessionários pois, na realidade, não passam de baldios ao serviço de um monopólio bem conhecido que, ao fim e ao cabo, consegue o exclusivo de compra da produção nativa.
Não sucederam os derrotismos dos velhos de Conto-ó. Sajá não regressou vencido. Não vingaram as bruxarias do Dambó, nem desgraça ou calamidade apoquentaram a iniciativa do lavrador mandinga. A morte de Famatá fora natural, consequente do esgotamento físico. Desde que deu à luz o primeiro filho, ainda em Conto-ó, nunca mais teve saúde.
A palhota inicial em Salquenhé, renovada ano a ano, cedeu o lugar a um edifício de pedra e cal, coberto a telha, com comodidades que superam as de muitas residências de comerciantes e ponteiros em actividade comercial no interior da província. A primeira safra de 50 bushels de mandioca atingiu depois as 700 anuais. A lavoura em bolanha e sequeiro produziam 500 bushels de arroz por campanha. A safra de vinho de caju estava em progressão à medida que as sebes de cajueiros se desenvolviam.
Para Bissau seguiam canoas carregadas de laranja e tangerina duma centena de árvores a produzirem. Há dois anos foi plantado um novo pomar com 200 pés de citrinas. A produção de oitenta coleiras é absorvida pelos mandigas e biafadas do Quinará. E na propriedade faz-se largo consumo e venda de mangas, papaias, fruta-pão, pinhas, limões e cajus.
Três filhos de Sajá, casados com raparigas balantas, trabalham em regime de comunhão de interesses. Os outros habitantes da povoação têm as suas lavouras e negócios privativos sem que paguem a Sajá qualquer arrendamento por cultivarem a terra que ele desbravou. A obediência e respeito que lhe reservam é consequente do seu êxito agrícola e do seu prestígio entre os civilizados brancos, mestiços ou nativos que não ignoram os pormenores da sua evolução social.
Mas os projectos de Sajá não param. Quer aumentar os seus pomares e as suas culturas de mandioca e arroz, caso possa resolver o problema da mão-de-obra, dificuldade que sempre tem constituído uma preocupação colectiva na província. Além disso, acalenta a ideia de ampliar a sua residência com mais comodidades e pensa, também, construir um prédio de rendimento em Bissau, a progressiva capital.
O seu filho Lássana, que vinha frequentando a escola primária das missões católicas, concluiu o segundo grau. Talvez mais tarde, na futura estante familiar da Ponta de Sajá, possam coexistir o Corão dos parentes islamizados, cada vez em maior número devido à acção eficiente dos mouros, ao lado da Bíblia que o bondoso missionário franciscano Adalberto tantas vezes explicou a seu filho Lássana.
Sajá Camará, que há 24 anos tinha estatuto de indígena, obteve depois a cidadania portuguesa. É conhecida a sua sólida posição económica. Os seus hábitos, domínio da língua portuguesa e outros requisitos que possui, apresentam-no como um bom produto da civilização lusitana.
Tal evolução constitui bom exemplo para todos os nativos da província e, por isso mesmo, merecia melhor atenção - e aproveitamento - dos que decidem...


Foto da esquerda: estas moças biafadas, obrigadas a um costume ancestral imposto pelas sucessivas camadas de "senadores" das sociedades gentílicas - a circuncisão - tiveram que consentir a excisão clitoridiana. A desumana mutilação genital, preconcebida defesa de uma estranha estrutura conjugal que, ao mesmo tempo, predispõe a mulher para "animal-trabalho", tem vindo, através do anos, a cair em desuso mercê de uma espontânea, embora lenta, evolução dos costumes, da influência das autoridades civis, e da persuasão cautelosamente branda dos missionários cristãos.
Foto da direita: rapariga bijagó, da Ilha de Sogá, numa dança ritual.



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