sexta-feira, janeiro 07, 2005

Reconciliação ou a legitimação da impunidade?

Origem do documento: Guiné-Bissau: contributo
por Inácio Valentim

Lisboa 29 de Dezembro de 2004

Já há muito que se vinha a notar que as instituições e as hierarquias bananeiras da Guiné tendiam a legitimar a impunidade. Todavia, esta constatação parecia ter lugar só nas auto-estradas da comunicação social e no diz que não diz do homem do povo.

No entanto, desde o passado dia 6 de Outubro, que aquilo que parecia ser uma simples suposição começou a ganhar força após a famosa revolta “por um pedaço de pão e por um copo de vinho”. A nação guineense e o mundo inteiro estavam à espera que a justiça fosse feita, que os responsáveis pela vandalização das instituições e das vidas humanas fossem julgados. Não só isto não aconteceu, como também passaram a ser os donos de Bissau, ou melhor, os homens fortes de Bissau.

Contra tudo e contra todos, viram as suas exigências serem aceites. Têm o senhor Tagme Na Wae e os demais corpos militares nos lugares que queriam. E, como se este gozar com os outros não bastasse, vêm agora vestidos de alvas dos pastores para nos falarem ou proporem a reconciliação. Palavra que certamente não conhecem nem compreendem.

Pois, ainda que quiséssemos despir a palavra reconciliação do seu sentido original, isto é, o seu sentido etimológico, com certeza que ela não poderia ser aplicada à contingência da realidade actual da Guiné.

A reconciliação exige antes de tudo a consciência de se ter cometido um acto mau e partir em busca de meios para a expiação deste acto, ou seja, ela é antes de tudo um acto interior, um acto que nos chama a nós mesmos, um acto que nos coloca diante do espelho da nossa verdadeira natureza. Ela é, portanto, um acto religioso, o que não quer dizer que seja um acto sagrado. Ela é um acto religioso, de religio, que faz a ligação (religare), isto é, que nos torna a ligar a uma situação com a qual por um motivo ou por outro, nos encontramos em situação de síncope ou de ruptura.

Nós encontramos muitas destas situações na Bíblia. Momentos em que o homem procura reatar a relação com Deus ou com o seu próximo a partir da expiação do seu pecado, se quiserem, da falta cometida. O exemplo mais elucidativo que a Tora (nome correspondente a Bíblia em língua hebraica) nos apresenta, é no Salmo 50. A famosa confissão do rei David, que procurava assim expiar o seu envolvimento na morte de Urias para poder ficar com a esposa deste. Fez jejum, cobriu-se de cinzas, vestiu roupas e mantas velhas.

Ora, o que se pede às pessoas envolvidas na vandalização e no desrespeito da vida humana, não é que se vistam de mantas e se que cubram de cinzas. Mas, que não travem nem influenciem a justiça, ou seja, que deixem a justiça fazer o seu trabalho.

A verdadeira reconciliação tem que ter antes de tudo a bênção da justiça. Olivier Clement, um dos nomes actualmente mais célebres em teologia, particularmente no pensamento teológico ortodoxo, dizia num dos seus inumeráveis escritos: não se deve empregar a palavra reconciliação simplesmente porque nos falta o vocábulo para dizer o que queremos dizer.

A afirmação parece simples, mas é bastante forte, porque quer dizer exactamente que não devemos estar nem devemos brincar com o sentimento dos outros. Falar da reconciliação, deve significar falar da justiça, repor os valores que negamos ao outro no seu devido lugar. Sei que provavelmente muitos dos leitores não são cinéfilos nem estou a querer torná-los cinéfilos. Mas para quem viu o filme The Mission, poderá com certeza compreender o valor da reconciliação, a descoberta do mal que temos feito ao outro, o valor que lhe temos roubado, a vida, a dignidade… Neste filme podemos constatar que todos os caminhos do personagem penitente, passavam pela subida e descida das montanhas, e foram raras as vezes que ele chegava ao cimo da montanha sem que a grande pedra que trazia nas costas não lhe caísse.

A distância que separava o cimo da montanha da terra plana, não era como a distância entre a ponta do nariz e o lábio superior. Ele descia tantas vezes e quantas vezes a pedra lhe caía. Fazia lembrar o mito de Sísifo de Albert Camus. Fazia este sacrifício não porque estava interessado em ter os favores dos outros, mas em estar bem consigo mesmo e com os outros. Estar bem com os outros, quer dizer reactivar a sua verdadeira natureza que é de estar plenamente COM-OS-OUTROS. Muitos dirão que não precisamos ver o filme The Mission para compreender o valor da reconciliação. Eu responderei, que quanto mais claro formos na elucidação, menos espaço damos para a criação de pretextos enganadores e dos subterfúgios.

Fazer a reconciliação actualmente na Guiné a este ritmo que os homens fortes do país nos propõem, merecerá sem dúvida a intervenção divina, como dizia Michel Hubou, um intelectual franciscano francês, no seu livro Le pardon indescíble (O perdão indizível). Uma intervenção divina que certamente não tem também nada a ver com um outro filme espectacular do realizador paslestiniano A. Souleiman.

Não vejo como é que o senhor X poderá perdoar Nino Vieira, quando disse num documentário feito por um canal português dias após a queda do Nino em 98, que nunca perdoaria o Nino, aliás, utilizando a expressão, aquele cão. As razões que evocou são válidas, isto para não falar do estado em que se encontra e que todos sabemos.

Será portanto verdade que o senhor X está disposto a perdoar o Nino? Queria lembrar, recorrendo ao livro de Michel Hubou, que perdoar não significa esquecer o mal sofrido. Ora o senhor X, de acordo com este documentário disse vezes repetidas que nunca poderia perdoar a Nino Vieira, porque nunca poderia esquecer os males que este o fizera. Contou, de acordo com o documentário, que durante a maior parte do tempo que esteve na prisão, a sua refeição, ou melhor, o prato da sua refeição, era a tampa de bidão de azeite de cinco litros e o copo de água, era também a tampa de bidão de cinco litros. O que induz que não é um sofrimento que se possa esquecer em dois dias, sem que no mínimo o culpado seja apresentado à justiça.

Este homem, estará disposto a conceder amnistia ao Nino Vieira? Quem diz X, diz milhares de nomes que passaram a mesma situação, quer em tempos de Nino, quer em tempos de Ansumane, assim como nos de Kumba Yalá.

Com que linguagem reconciliadora falaremos aos familiares das vítimas que foram executadas, não porque mereciam a execução, mas porque o Estado não podia libertá-las por estarem com falta de alguns membros. Dedos, unhas, castração, vistas, disfunção mental... Não vão me dizer que é porque estavam a ser bem tratados que se encontravam neste estado. Não me vão dizer que é porque a justiça legítima tinha decidido assim.

Afinal, de que reconciliação estamos a falar? Uma reconciliação que vai adiar os conflitos reais para daqui a cinco anos, quando o senhor X se lembrar que não deveria ter perdoado o Nino? Quando os familiares do caso 17 de Outubro, de Viriato, de Paulo Correia, de Ansumane, de Veríssimo, de Domingos Barros e de demais nomes dos eternos períodos sombrios, se lembrarem que a justiça não foi feita, e decidirem recorrer às armas para fazer a própria justiça?

A opinião pública nacional e internacional estaria mais contida, menos reaccionária e pouco risonha, se estes senhores tivessem falado da legitimação da impunidade. Pois, isso, é algo que parece ter sido aceite não só pela opinião pública nacional, como também, pelo opinião pública internacional.

Com efeito, a Guiné não é conhecida internacionalmente por ser um país, mas por ser um núcleo de coetâneos que se gerem regularmente através das revoltas e revoluções. E, como disse Blaise Pascal,”em nenhuma revolução a força foi posta ao serviço da justiça”. A Guiné é um exemplo típico disso. Por ser um país das revoluções, nunca teve o tempo de pôr a justiça em prática. Em vez de assumirmos a nossa incapacidade, passamos o tempo a projectar a culpa nos outros.

Os intelectuais de caneca, cozinham a febre anti-ocidental. Queixam-se de que das Universidades Ocidentais são elaborados e empacotados os resíduos anti-nacionalistas, isto é, os guineenses que pensam de maneira diferente dos pseudo-nacionalistas. Estamos a querer sair do semi ridículo para entrar no incontestavelmente ridículo, ao pensar que se pode imaginar hoje em dia um país ideal que não passe pelo desenvolvimento e pela tecnologia da bifurcação, particularmente em conexão com o Ocidente.

Estamos a optar pela cegueira voluntária, quando de facto, mesmo as sociedades e grupos mais anti-ocidentais utilizam meios de comunicações ocidentais para divulgar os seus projectos e os seus ideais.

O Ocidente pode ter muitos defeitos, mas não se faz parvo no que diz respeito aos seus interesses. A França que é um país de alta cultura e alta tecnologia, decidiu no verão passado assinar um acordo de cooperação com o Estado hebraico para aprender a tecnologia de ponta para o fabrico de algumas armas sofisticadas. Não estou a referir-me à Itália, à Holanda, a Grécia, a Espanha ou a Portugal. Estou a falar da França, cujo peso intelectual e cultural todos conhecemos, ou melhor, é suposto conhecermos.

A China, que hoje cresce a 8%, é dependente tecnologicamente em termos de armamento militar do estado hebraico. Basta acompanhar as actualidades, particularmente destes dias, em que os Estados Unidos com medo que o Estado hebraico venda à China as tecnologias que eles (os E.U.A) desconfiam ainda não ter, fazem pressão sobre o Estado judaico para que não as ofereça à China.

Israel não é um país ocidental, mas soube tirar o proveito da sua ocidentalização e é um quebra cabeças para muitos países ocidentais, porque possui não só a tecnologia militar superior à maior parte dos países da União Europeia, como também possui ainda várias outras tecnologias superiores à grande parte dos países da U.E em áreas que não necessariamente as áreas militares.

Basta pensar nas declarações vociferantes que fez a França no verão para que esta se ajoelhasse aos seus pés. Os intelectuais de estrada vão dizer que Israel tem o apoio dos Estados Unidos de América. Eu respondo, coitado dos Estados Unidos que nem sequer imaginam a quantidade do arsenal nuclear de que dispõe o Estado hebraico. Quem o disse é o cientista hebraico raptado em Roma pela Secreta israelita e que passou 18 anos na prisão antes de ser libertado em Setembro ou Outubro deste ano, salvo erro. Aliás, voltou outra vez à prisão, porque foi apanhado em Belém onde foi assistir à missa do galo, quando devia estar nos subúrbios de Jerusalém onde tem a residência controlada.

Deixemos portanto de nos humilhar ao ridículo, acusando o Ocidente por tudo e por nada, como se não conhecêssemos as causas efectivas da nossa desgraça.

O país está mal em todos os sentidos. Até a Igreja católica guineense não escapa. Algo verdadeiramente triste e vergonhoso. As inúmeras intervenções dos bispos guineenses não poderiam merecer uma interpretação analiticamente caricata e hipócrita. Não porque os bispos não tenham direito de ter uma intervenção política pública. Longe disso. Ao contrário, até porque cada vez que intervêm fazem-no com mérito, sem no entanto deixar de induzir um falhanço brutal e hipócrita a nível da evangelização.

Era suposto que o que eles fazem fosse feito pelos cristãos para demonstrar a sincronia e sintonia entre o Evangelho enquanto o anúncio e o Evangelho enquanto actuação que é o resultado da compreensão do anúncio. Isto não está acontecer, o que induz que algo também não vai bem a nível da Igreja local.

Não há uma política para a formação e responsabilização dos leigos. Ao contrário, são marginalizados, às vezes com uma certa razão, pese embora, compete à Igreja local delinear as directivas para a estrutura dos leigos. Isso evitaria que os bispos, padres e religiosas fossem uns tapa buracos nas intervenções que deveriam ser feitas em grande parte pelos leigos, como o fez o Professor Botiglioni na Comissão Europeia em relação à homossexualidade e como o faz o CDS-PP de Paulo Portas em relação ao Aborto.

Não me atrevo a falar das outras religiões porque não conheço bem as estruturas, mas pelo que se sabe, nenhuma religião está tão bem organizada como é o caso da Igreja Católica na Guiné, de modo que, o contributo que elas possam dar para o país dispensa o comentário, algo que não é sinónimo de ausência de contribuo para o país em relação a estas religiões, longe disse.

Devemos portanto, no meio desta instabilidade e incoerência em que se encontram todos os sectores do país, desconfiar do optimismo de que está a ser revestido e idealizado em relação à reconciliação do país. Pois, como dizia Jorge Sorel na sua reflexão sobre a violência: Em política, o optimista é um homem inconstante ou mesmo perigoso. Não precisamos de ir muito longe para encontrar o espelho desta afirmação. A presidência do Kumba Yalá que o diga. Não há reconciliação sem justiça e não há justiça sem a liberdade dos Tribunais e dos magistrados.

Se não podemos respeitar a palavra RECONCILIAÇÃO, pelo menos temos a obrigação de fazer um esforço para respeitar as vítimas, que com certeza não se sentirão nunca incorporadas por ela.

Cozinhem o que cozinharem, o certo é que a verdade nunca será superada eternamente pela capacidade de influência.



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