segunda-feira, outubro 04, 2004

A terra não pode "emagrecer"

Origem do documento: Esporo - Informação para o Desenvolvimento Agrícola dos Países ACP (CTA - Centre Techniquede Coopération Agricole et Rurale ACP-UE)

Neste número fala-se de maus tratos à mãe natureza e da tragédia que resulta do empobrecimento do solo pela erosão e falta de fertilização. Por razões naturais e históricas, esta problemática tem contornos agudos na República de Cabo Verde, mas o êxito da inteligente e vigorosa intervenção até agora operada transformou-a num caso de estudo.

No Arquipélago de Cabo Verde, a aridez do Sahel amarrou no meio do Atlântico. Nestas ilhas, com excepção de escassas zonas de altitude, chove muito pouco, e sobretudo com uma tremenda irregularidade. Mas ninguém se admira se ocorrerem, depois de muitos meses de seca, precipitações superiores a 200 mm em 24 horas, com todo o seu cortejo de destruições. Si ca tem tchuva, morrê di sede / Si tchuva bêm, morrê fogado (diz a Morna).

O território, esse, a Natureza fê-lo invulgarmente rude, de tão acidentado. Os solos, com enormes declives, foram desde sempre sujeitos a uma erosão constante e pronunciada. As consequências do aproveitamento agrícola, iniciado no séc. xv com o povoamento, levaram A. Chevalier a afirmar: Cette occupation par l’homme a été desastreuse. Afirmação que registamos pela força com que denuncia o revés que a Natureza aqui sofreu, tal como noutras regiões do Sahel, com o processo erosivo provocado pela agricultura, e consequente erradicação do coberto vegetal, levando a que, no auge da seca, nos confrontemos com belíssimas paisagens, mas que suporíamos serem lunares. Registe-se que à data da independência, e para dar uma medida da alarmante degradação atingida, o coberto vegetal permanente do país era inferior a 3000 hectares (menos de 1% do território).

Mas neste contexto, e designadamente no meio rural, o que importa é a luta que os Homens desta terra travam todos os dias, para sobreviver e garantir o futuro. "A maioria das famílias parece viver "no fio da navalha" — uma epidemia que mate parte do seu tesouro (os animais), um ano de más "águas", o fecho de uma frente de trabalho público, a emigração de um membro activo do sexo masculino, são factores capazes de destruir o equilíbrio precário em que sobrevivem as famílias que não possuem um membro activo com actividade regular fora da exploração."(1)

Quando no pós-independência se conceberam as linhas mestras para os programas de desenvolvimento nacional, não houve dúvidas em considerar prioritária a conservação do meio físico, indispensável à perpetuação da presença humana nas ilhas. Nasceram então programas de conservação da água e do solo, visando a correcção torrencial e a recuperação do coberto vegetal, especialmente nas encostas mais devotadas à produção agrícola de sequeiro e à pastorícia.

Assim se lançou mão da construção de arretos (pequenos muretes de pedra solta) e de banquetas em curva de nível nas encostas, sobretudo nas áreas situadas mais a montante, como mandam as regras, embora se tenham também disseminado algumas destas obras mais a jusante, ou em bacias não objecto de intervenção alargada a toda a sua área, com o objectivo de conhecer a reacção das populações, bem como o comportamento destas estruturas em condições geológicas e topográficas diferenciadas. Foram também construídos diques nas linhas de água principais e subsidiárias e, reconhecendo-se a impotência para fixar eficazmente o solo nas zonas de montante, através da generalização, a curto prazo, das obras atrás referidas, optou-se pela "…construção simultânea de estruturas a jusante (diques e espigões), como forma de reter o caudal sólido, mas respeitando o perfil de compensação atribuído a todo o processo de correcção torrencial da bacia".(2)

Desta forma, para além da defesa das encostas, foi promovida a recarga de lençóis freáticos, a diminuição do transporte sólido, a construção de estruturas de armazenamento de água superficial e a recuperação de centenas de hectares de terras para o estabelecimento de regadios temporários ou permanentes.

Curioso, inédito e eficaz processo de envolvimento num objectivo comum
Logo que no início da estação das chuvas tenham caído do céu os primeiros preciosos 30 mm, desencadeia-se em Cabo Verde, nos locais previamente programados, a plantação de árvores. Nas imediações da cidade da Praia, capital do país, essa tarefa pertence aos funcionários públicos de todos os ministérios, que em rotação assim se juntam aos agricultores na execução deste objectivo nacional. Assim aconteceu durante uma dezena de anos, com o Primeiro-Ministro (actual Presidente da República) a participar pessoalmente nos trabalhos de plantação logo no primeiro dia de campanha. Todos os outros servidores do Estado, desde os ministros aos amanuenses, passando necessariamente pelos directores gerais e quadros de todas as categorias, executavam directamente, com as suas mãos, pelo menos um dia por ano, o trabalho de reflorestação.

Plantação de árvores com empenho activo da sociedade civil
Simultaneamente foi desencadeado, com o empenhamento activo e muito original da sociedade civil, envolvendo não apenas as populações rurais mas também os servidores do Estado, um ambicioso plano de plantação de espécies arbóreas e arbustivas, nas encostas mais degradadas, que apesar de tudo eram normalmente utilizadas na cultura do milho, embora com resultados marginais. Paralelamente, procedeu-se à plantação de sebes vivas em áreas com maior potencial agrícola, visando, em conjugação com outras medidas, estabelecer um sistema eficaz de controlo da erosão e melhorar a produtividade dos solos assim defendidos. O plano teve início com a plantação das espécies arbóreas cuja adaptação às condições ecológicas locais era já conhecida, tendo-se simultaneamente iniciado um programa de experimentação para a introdução de novas espécies.

"O programa acabado de referir foi acompanhado por medidas tendentes a liberalizar o consumo de gás butano nas áreas rurais, pela divulgação do uso de fogões (a lenha) melhorados, visando um melhor aproveitamento da energia produzida pelo combustível lenhoso, bem como pela produção de carvão a partir de algumas espécies, fundamentalmente da Prosopis jubiflora."(3)

Nos finais do ano 2000 os resultados atingidos eram a todos os títulos impressionantes: a área arborizada ultrapassava 80000 ha (cerca de 20% do território nacional), situando-se 20000 ha acima do programa inicialmente estabelecido.

Do ponto de vista da produção agrícola, não cabendo aqui uma análise das transformações ocorridas no sector, é contudo indispensável assinalar que a maioria dos produtos hortícolas, que eram antes escassos e objecto de importação, estão hoje presentes nos mercados a partir da produção local, embora a preços ainda elevados.

O maior êxito está na adesão das populações
A evocação destes factos conduz necessariamente à formulação de duas questões. Como foi possível conseguir estes resultados, e qual o seu significado para o País, ou melhor, qual a responsabilidade criada para a continuidade deste processo no futuro.

Questões que parecem apontar para uma única resposta: o êxito alcançado ficou a dever-se ao ajustamento das acções desencadeadas às necessidades sentidas pelas populações e, assim sendo, o caminho a seguir, está naturalmente traçado.

Nos últimos 30 anos, a vida frágil dos agricultores foi condicionada pelo agravamento das já muito marginais condições climáticas locais para a produção agrícola de sequeiro e, em paralelo, por todas as mutações que se produziram no País, com reflexos directos na sociedade rural. O limite de sustentação da paisagem, já há muito tempo vinha sendo violentado pela sobreexploração do solo, sem o concurso de acções de protecção e de recuperação da fertilidade. Mas o consequente recuo da área afecta à exploração de sequeiro, que se vem verificando ultimamente, só pôde ter lugar e explicação devido às "alternativas" que os agricultores agarraram: o grande empenho na expansão do regadio, e onde tal não foi possível, as frentes de trabalho, ou ainda o que aconteceu a muitos, o largar a aldeia na mira das oportunidades desencadeadas, no período pós-independência, pelo desenvolvimento urbano.

Apesar de implantados em áreas de utilização agrícola, ainda que marginal, o êxito dos programas de conservação da água e do solo, e salientamos aqui não apenas os resultados já visíveis na paisagem, mas, sobretudo, aquilo que a sua aceitação pela população rural representa, deve-se em grande parte ao facto de o trabalho que propiciaram com a sua execução ter dado resposta a necessidades prementes das famílias. "Primeiro a barriga, depois o futuro"(4), no dizer de uma agricultora de Rui Vaz.

Mas os agricultores ainda não têm condições para investir
E se o êxodo rural tem de ser realisticamente encarado como fazendo parte da resolução dos problemas que as famílias enfrentam, e a prová-lo o facto de, não havendo no actual contexto de exploração da terra, em regime de parceria ou arrendamento, condições para que o próprio agricultor invista em melhoramentos fundiários ou de exploração, surgindo então, como solução mais razoável, o investimento na "… educação dos filhos, que mais tarde terão assim mais probabilidades de encontar um emprego fora da agricultura ou de emigrar"(5), tudo deve ser feito, no entanto, no sentido de valorizar os espaços rurais a fim de melhorar as condições de vida locais e conter o êxodo dentro de limites razoáveis, pois a emigração ou a deslocação para os espaços urbanos tem os custos sociais conhecidos.

Valorização a conseguir através da oferta de trabalho local, que tem sido o pilar de sustentação de muitas famílias, factor de dinamização das comunidades rurais, através das Associações de Agricultores, e ainda a forma eficaz de execução de programas de protecção ambiental, que exibem já frutos inquestionáveis.

Olhando para o êxito alcançado, forçoso é contudo reconhecer que haverá ainda aspectos a corrigir, quer na vertente técnica, quer administrativa do processo. A experiência decorrida sugere nomeadamente que se melhorem os métodos de controlo da erosão, se fomente a biodiversidade do coberto arbóreo e arbustivo de revestimento dos solos mais declivosos e que se apoie ainda a evolução dos sistemas de produção agrícola e pecuária, sobretudo criando ao agricultor condições para o pleno exercício da sua actividade. Mas essa mesma experiência impõe também a adopção de caminhos renovados no processo administrativo de execução dos trabalhos, por forma que sejam os seus objectivos últimos, o apoio às populações e a sua participação no processo, a determinar o modo de actuação.

Se até aqui este processo foi tão inovador e constituiu globalmente um tão destacado exemplo de êxito, por que não levar a todo o país a intervenção, dando simultaneamente mais segurança aos agricultores, ao nível dos direitos e dos apoios, para que eles possam investir com eficácia o seu saber e o seu esforço, em proveito próprio e do País?

Agradecemos as informações disponibilizadas pelos Eng.o Agr. Horácio Soares (ex-Director-Geral de Agricultura da República de Cabo Verde) e Eng.a Agr. Marina Temudo Padrão (Investigadora — IICT/ Lisboa).

Citações 1, 4 e 5 — Padrão, Marina Temudo, "A terra está a emagrecer — Percepções sobre a erosão dos solos dos agricultores de Santiago (Cabo Verde), Lisboa, IICT, 2003.

Citações 2 e 3 — Comunicação pessoal do Eng.o Horácio Soares.



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