sábado, outubro 02, 2004

O Homem-Grande da tabanca do Saltinho

Origem do documento: encontrarse.com

Historias de viajes > O Homem-Grande da Tabanca (en portugués) (#N1418) 12-03-2003

Este texto fue escrito por GUARDA_RIOS

“O Homem-Grande da Tabanca”

Fazia calor. Muito calor. E fazia-se acompanhar por uma taxa de humidade que colocava a agulha do meu higrómetro portátil nos 85%, o que tornava os nossos corpos pegajosos, indesejáveis.
Mas como aquele que corre por gosto, sempre se cansa um pouco menos, suportámos com estoicismo a inclemência daquele abrasador sol africano, ajudados, é certo,
pela sombra de uma providencial mangueira, de porte imponente, secular, que se encontrava à beira da estrada.
Já tinham passado cerca de duas horas, quando uma longínqua miragem, ondulante e muda, se transformou num camião de verdade, rangendo e tossindo de verdade, com ferrugem, muita, feita de muitas verdades.
Vinha carregado de arroz, o saboroso maná das bolanhas da Guiné-Bissau e, o seu aparecimento, constribuiu para o renovar da esperança de poder continuar a atravessar este país africano à boleia.
Mamadu D’Jaló, o sorridente motorista, seguramente de bem com a vida, quase não esperou que pedíssemos o que era mais que óbvio.
Os quinze quilómetros que separam a tabanca de Sindjamade da localidade do Saltinho foram percorridos num ápice, apesar do reumático e das patologias várias de que padecia este velho dinossauro das picadas africanas, porque o asfalto, recentemente colocado pela cooperação italiana, estava em óptimo estado.
Saltinho é o nome da pequena - leia-se minúscula - povoação na margem esquerda do Rio Corubal. Foi lugar de importância estratégica militar, durante a guerra colonial, visto que a ponte de quatro arcos que passa sobre os rápidos do rio - daí a designação do lugar - era o elo de ligação entre o sul e o norte do país, ou, mais exactamente, entre o sul e a capital, Bissau.
Poucos anos após a construção da referida ponte, em 1955, houve necessidade de ali colocar uma guarnição militar permanente, visto a colónia se ter começado a confrontar com um movimento de guerrilha pró-independência, liderado pelo PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde.
Resolvemos procurar um pequeno bar onde matar a sede com algo que se deixasse beber melhor que a água que levávamos - nesse momento em condições de poder preparar uma qualquer infusão - mas tal redundou em fracasso total.
Não esperava encontrar nenhuma “loira” geladinha, visto estar num país essencialmente muçulmano - as loiras, com e sem aspas, só se encontram na capital - mas nem sequer um exemplar, fresco, daquela universal e quase omnipresente mistela yankee, que se pode encontrar nos lugares mais recônditos do planeta. E cujo vasilhame pode, com um pouco de “sorte”, atingir um pacífico bosquímano, em pleno deserto do Kalaári!
Também as sombras não abundavam ali na povoação. Reparámos então que na margem oposta a vegetação era bastante frondosa, e explicaram-nos que ali existia uma tabanca, a principal do lugar.
Era uma tabanca implantada no meio de frondosas mangueiras, com o seu terreiro central bem varrido, e com o habitual cenário das pequenas aldeias africanas: as crianças, em bando, as galinhas esgravatando um pouco por todo o lado, um ou outro cabrito passeando livremente, um cão com sarna, um par de robustas mulheres pilando o milho no enorme pilão, tudo em perfeita harmonia.
Uma jovem bajuda, de corpo esbelto e firme, cruzou-se connosco à entrada da aldeia e aproveitei para lhe perguntar se o “homem-grande” estava.
Apontou na direcção da fresca e sombreada varanda da palhota mais linda e grande, e pude então perceber que, à sua sombra, numa quase penumbra, se encontrava alguém repousando numa rede.
À medida que nos íamos aproximando, pude perceber que um ancião, de carapinha branca mas idade indefinida - impossível de adivinhar para os nossos padrões fisionómicos - fumava, com ar digno e pose selecta, um pequeno cachimbo artesanal.
Foi então que, dando pela nossa presença, o velho se pôs de pé num ápice, com inesperada agilidade e eu, tomando a dianteira à mulher que me acompanhava, segundo a tradição local, cumprimentei-o com um firme e sincero aperto de mão, inclinando respeitosamente a cabeça.
Fez-se silêncio na aldeia. Percebi, então, que não era todos os dias que naquele lugar perdido no meio do continente negro, a quase duas décadas da partida dos últimos homens brancos, uma cena como esta acontecia.
Abdu-Fati, de seu nome, chefe tribal muçulmano respeitadíssimo, da idade da sabedoria, e o “Homem-Grande” da tabanca do Saltinho, na margem esquerda do Rio Corubal, apertou, vigorosa mas solenemente, a minha mão, sorrindo. Era um inequívoco sinal de boas-vindas !
Estávamos em pleno Ramadão, e os rituais diários sofrem algumas alterações, ficando toda a vida da aldeia condicionada por este período de renovação e purificação dos crentes muçulmanos. Dos horários para orar, até ao regime de jejum e abstinências várias que vigora, tudo muda um pouco. No entanto, e justamente porque não chegámos na melhor altura, realço ainda mais a disponibilidade e a fraternidade deste soberano local, que pôs toda aquela aldeia por nossa conta, começando por ele próprio, que nos disponibilizou a sua bela e fresca casa, retirando-se para um humilde quartinho, onde mal cabia uma esteira para se deitar. Gostaria de saber quantos pretensos civilizados fariam o mesmo!
Estupendo conversador, senhor de um sentido de humor muito especial, fez questão de nos mostrar pessoalmente a sua grande plantação de cajú, explicando-nos que a mesma se encontrava um pouco abandonada, e a precisar de uma boa limpeza. Tal estado de coisas devia-se ao facto de os seus dois filhos mais velhos terem decidido abandonar a vida da aldeia, partindo para a capital, com a ilusão de uma vida mais fácil, tendo um deles já tido problemas com as autoridades policiais.
Contou-nos, de uma forma sentida, várias peripécias do tempo da guerra pela independência, quando ele era o homem de confiança do capitão da Companhia que guardava a ponte, e de como os outros oficiais subalternos discordavam do comandante, dizendo que o Abdu era um infiltrado do PAIGC.
Mostrou-nos os recibos simples, de papel amarelecido pelo tempo, que o capitão lhe passava para justificar a entrega de determinadas quantias, destinadas à compra de víveres fora do aquartelamento, nomeadamente cabritos e vacas, quando as tropas portuguesas já experimentavam grandes dificuldades para se movimentarem no terreno.
Tudo isto era exemplificado com a exibição de velhas e desbotadas fotografias, recortes de jornais e correspondência pessoal. Naquelas fotos, guardava Abdu o melhor das recordações da sua longa relação com os portugueses, fazendo-me sentir que eu era o primeiro a visitar e a pernoitar na sua tabanca, em quase vinte anos.
Tive então a certeza de sentimentos que sempre levei dentro de mim: independentemente da cor da pele, das convicções religiosas, das opções políticas, da idade, do sexo, da cultura ou do estatuto social ou profissional de qualquer um de nós, os homens de boa-vontade são e serão sempre irmãos.
Bem-haja, Abdu Fati, o Homem-Grande da tabanca do Saltinho, na margem direita do Rio Corubal, na Guiné-Bissau.



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