segunda-feira, outubro 04, 2004

Arroz: a escolha do sabor e o saber da escolha

Origem do documento: Esporo - Informação para o Desenvolvimento Agrícola dos Países ACP (CTA - Centre Techniquede Coopération Agricole et Rurale ACP-UE)

por Marina Padrão Temudo, Revista de Ciências Agrárias, v XIX, n 4, Lisboa, Out-Dez, 1996

A escolha do sabor e o saber da escolha

Uma interessante análise, de que registamos alguns extractos, sobre a forma como os produtores de arroz do sul da Guiné-Bissau, introduzem, experimentam e difundem as novas variedades.

"Há tantas raças de arroz como de pessoas e estão sempre a aparecer novas porque quando alguém vai de viagem, se vê um arroz bonito de que gosta, pede um bocadinho de sementeira. A seguir experimenta-o na sua bolanha e se o arroz e o chão se querem, o arroz pare bem. Depois leva-o para casa e pede à mulher para o cozinhar e se ela diz que ele vale e gostarem de o comer, no ano seguinte vai cultivar uma parcela maior. Se aquele arroz começa a ganhar fama, outros vêm pedir-te sementeira. Ao fim de dois anos (de cultivo) o arroz pare outro e se o achas bonito, separas a sementeira e no ano seguinte vais trabalhá-lo numa parcela maior, até teres a quantidade que queres trabalhar."

Foi desta forma que Alidji Issufi Soaré (95.04.26) descreveu à investigadora "… o processo de selecção e multiplicação de arroz, ilustrando a diferenciação do saber entre os sexos e identificando os dois grandes vectores de introdução de novas variedades: a introdução propriamente dita através de canais de difusão informais e a selecção de uma variedade que surge a partir de outra (seja devido à falta de pureza da sementeira, ou a possíveis cruzamentos espontâneos entre variedades)".

"A experimentação é uma constante em qualquer sociedade agrária dita "tradicional": permanentemente os agricultores testam novas espécies ou cultivares, novas técnicas culturais e novos instrumentos que observaram noutros lugares, trazidos por visitantes ou oferecidos por vizinhos. Esta experimentação é feita em pequena escala e com baixos custos, mas sobretudo a um ritmo lento que não compromete a sobrevivência destas comunidades, dada a aplicação de uma estratégia de minimização dos riscos."

Mais do que uma variedade
"Na pequena região de Cantanhês foram relatadas em cultivo cerca de vinte e seis variedades de bolanha salgada e vinte e três de sequeiro, algumas das quais de Oryza glaberrima.

A maioria dos produtores inquiridos cultivam mais do que uma variedade em simultâneo, apresentando as seguintes razões:

a) cultivo de variedades com diferentes ciclos vegetativos o que vai determinar:
• uma maior segurança alimentar: as variedades de ciclo curto destinam-se a colmatar a fome no período de escassez alimentar e as de ciclo longo são "as que aguentam a morança";
• uma estratégia de minimização dos riscos, maximizando a produção: na incerteza das condições climáticas é mais seguro escalonar a produção com variedades de diferentes ciclos, arriscando cultivar as de ciclo longo numa determinada percentagem, dada a sua maior produtividade;
• o escalonamento das diferentes operações culturais em função da disponibilidade em mão-de-obra da morança;
b) adaptação a diferentes manchas de solo;
c) adaptação a diferentes condições hídricas;
d) gosto pessoal, o que era frequentemente expresso pela metáfora: "Tu não gostas de mudar de roupa? Nós também gostamos de mudar de sabor!…"

Critérios de selecção varietal
"Muitos são os critérios locais de selecção varietal de arroz:
a) rendimento no campo (produtividade medida em volume);
b) rendimento no caldeirão (grau de inchamento durante a cozedura);
c) rendimento na barriga (tempo de digestão);
d) rendimento na bemba (tempo que demora a consumir o arroz armazenado num dado recipiente e que depende da densidade e do grau de inchamento à cozedura);
e) ciclo vegetativo;
f) tolerância à salinidade;
g) tolerância ao encharcamento;
h) tolerância à secura;
i) tolerância ao ensombramento;
j) susceptibilidade à acama;
k) susceptibilidade à desgrana;
l) susceptibilidade ao ataque das pragas;
m) facilidade de descasque e polimento;
n) dureza (depois de cozido);
o) sabor;
p) facilidade de malhar;
q) capacidade de afilhamento;
r) comprimento do caule;
s) exigências nutricionais;
t) rendimento de balança (produtividade em função da massa)."

Razões para o abandono de variedades
"Quanto às razões que conduzem ao abandono de variedades experimentadas e cultivadas, as principais motivações dizem respeito à duração do ciclo vegetativo, ao grau de inchamento do grão durante a cozedura e ao tempo de digestão."

São também frequentemente indicadas como razões de abandono: a tendência para a desgrana, a cor do pericarpo ("as mulheres não querem pilar arroz vermelho e às vezes fazem trapaça e cozinham também a sementeira"); o comprimento do caule, a dificuldade de desprendimento do grão durante a malha. Repare-se que estas últimas características podem causar grandes problemas na mobilização de mão-de-obra extra-morança, nos períodos de ponta de trabalho.

Para além da fraca capacidade de inchamento do grão, o "excesso" de sabor foi também apontado como razão de recusa de variedades: "rebentam com a morança, porque as pessoas querem sempre comer mais. Só podem ser produzidos em moranças em que o número de comedores é menor do que o de trabalhadores ou produzidos em pequena quantidade para alguém grande ou para hóspedes nas parcelas individuais".

A "gestão da incerteza"
"Conclui-se que o processo de experimentação e os saberes locais associados à selecção varietal do arroz têm fundamentalmente subjacentes critérios de decisão de minimização dos riscos de déficite alimentar, aos quais se submetem os critérios de adaptação agroecológica. No seu conjunto pode considerar-se que estes critérios integram um saber complexo de "gestão da incerteza" em que se desenvolve a produção agrícola em regiões de fracos recursos."

"A experimentação pelos produtores de uma nova variedade faz-se se existe a expectativa de que ela seja melhor do que uma das variedades cultivadas em relação a um ou vários critérios de selecção e a variedade é apropriada se essas expectativas foram confirmadas experimentalmente."



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