sábado, setembro 25, 2004

Viver com a SIDA

Origem do documento: panapress, 24 Mar 2003

"A SIDA existe. A prova é que eu sou portador do vírus HIV há vários anos. Eu exorto toda a gente a acreditar que a SIDA existe". A voz que assim fala é anónima, mas parece familiar, pois ela exala uma sinceridade tranquila que inspira a confiança, para além da emoção que suscita. A declaração que assim chega à população através das antenas da Rádio Bombolon, neste dia 10 de dezembro de 2002, é por si um acontecimento inédito.

por Fafali Koudawo

A SIDA é ainda um tabu na Guiné-Bissau. Contrariamente aos outros tabus, fala-se muito nela, mas em termos sempre gerais que fazem desta afecção uma abstracção tão remota quanto pode ser a crença na existência de uma galáxia longínqua repleta de extraterrestres. Na percepção da maioria da população, a SIDA ainda não é uma realidade concreta. É por isso que na mesma emissão radiofónica dedicada à SIDA neste 10 de dezembro uma segunda voz anónima insiste: "Tal como disse o meu camarada, a SIDA é uma realidade. Eu também sou portador do vírus há vários anos. É preciso que toda a de gente saiba que a SIDA não é uma invenção explorada pelos "brancos" e as ONG para comer dinheiro à custa do povo, como dizem algumas pessoas".
Estas exortações são feitas por dois membros da associação Nova Vida que
congrega cerca de 30 seropositivos empenhados na luta contra a fatalidade da SIDA.
A associação Nova Vida nasceu há dois anos. Surgiu da vontade de um grupo de
portadores do vírus HIV de unir os seus esforços e partilhar as suas experiências na
luta pela sobrevivência e contra a exclusão. É a primeira e ainda única iniciativa do género na Guiné-Bissau. Para lá chegar foi preciso uma longa e desastrosa
caminhada.
Quando surgiram, nos anos 80, as primeiras informações sobre a prevalência
do HIV em África a Guiné-Bissau foi logo catalogada como um país de forte prevalência do HIV-2 considerado menos virulento que o HIV-1. Apesar da inquietação
suscitada, estas informações não despertaram uma consequente onda de iniciativas
de prevenção. Os anos passaram e a falha facilitou o alastramento da infecção. Hoje
em dia o HIV-1 expande-se rapidamente e a sua taxa de prevalência já ultrapassa a
do HIV-2, fazendo da Guiné-Bissau um dos raros países onde os dois tipos de HIV
circulam e já contaminaram cerca de 7% das pessoas sexualmente activas com mais
de 15 anos de idade.
Perante este quadro sombrio, as poucas dezenas de membros da associação
Nova Vida são uma gota de água no oceano da pandemia. No entanto, a sua actividade é socialmente importante. Ela promove uma tomada de consciência sobre a realidade e o perigo do HIV/SIDA, enquanto que o CIDA (Centro de Informação, Despiste e Aconselhamento, da ONG Alternag) que impulsionou a criação da associação continua as suas actividades de sensibilização da população e enquadramento dos seropositivos.
Criado há menos de dois anos, o CIDA já granjeou uma extensa experiência no
aconselhamento num sector muito sensível. "A nossa tarefa é delicada, porque
lidamos com pessoas na encruzilhada da sua vida. O resultado de um test pode mudar
radicalmente o curso de uma vida." afirma Isabel Garcia Almeida, a coordenadora do
CIDA que esconde a sua emoção ao relembrar algumas experiências difíceis, como foi
o caso de um despiste massivo de 100 bolseiros em 2001. As vidas dos 4 seropositivos despistados neste grupo foram brutalmente transformadas em calvário.
Para além do falhanço no domínio da voluntariedade e do sigilo que devem
envolver os testes e que foram transgredidos neste caso de despiste obrigatório e
massivo, os resultados foram assimilados a autênticas sentencias que aniquilaram as
esperanças dos seropositivos. Adeus bolsa tão esperada, adeus formação tão almejada, adeus futuro desejado.
Para evitar que o despiste desemboque num beco sem saída, a informação e o
aconselhamento precedem cada test voluntário. Mas nem sempre o esquema é
respeitado. Tal foi o caso de um jovem aparentemente cheio de saúde que veio da
cidade de Bafatá fazer o test como um desafio. Em jeito de resposta aos aconselhamentos e às explicações, ele afirmou que não acreditava na existência da
SIDA, acrescentando que estava contra o uso do preservativo nas relações sexuais, e
vinha fazer o test como um desafio para provar a não existência da SIDA. Fez o teste.
Este revelou que ele era portador do HIV. Desapareceu, e nunca mais se ouviu falar
dele... Também, nunca mais se ouviu falar desta jovem rapariga de 16 anos que veio
fazer o test a pedido do seu amante europeu que exigia uma prova positiva de saúde
reprodutiva antes de sonhar com uma caminhada séria a dois. Ela recebeu o resultado
da sua seropositividade como uma bomba em plena cara e nunca mais reapareceu no
CIDA.
Tal não é o caso dos associados da Nova Vida que encaram com seriedade a
sua situação. As histórias individuais dos membros são por si edificantes. Esta mulher de 37 anos com 6 filhos teve um test positivo em dezembro de 2001. Fez uma
profunda depressão perante a perspectiva de ser discriminada na sua família.
Aconselhada e bem acompanhada, ela reabilitou-se rapidamente. Recusou um casamento com um irmão do seu falecido marido como reza a tradição. Decidiu assumir o seu destino com determinação, procurou e encontrou um fundo para retomar os seus negócios parados pelas doenças oportunistas que dilapidaram as suas poupanças. Hoje ela é de novo uma comerciante próspera que viaja regularmente na sub-região .
Contudo, nem toda a gente consegue superar o mal através do esforço solitário. Para uma outra mulher, membro da Nova Vida, o regresso à normalidade da
vida passa por um novo casamento depois da morte do seu marido ceifado pela SIDA.
Ela exprimiu este seu desejo aos assistentes do CIDA, e já tem uma ideia nítida sobre o perfil do futuro cônjuge que deve ser um homem não portador do HIV. A sua
intenção é clara e firme, pois não quer casar um outro seropositivo. À primeira vista esta ideia pode estranhar, mas pode também ser compreendida como a vontade de
recusar o acantoamento dos seropositivos num ghetto do HIV. Trata-se de uma
vontade de integração total na sociedade, e talvez de fazer frente à adversidade com o apoio de um homem realmente válido...
Edificante também é a experiência deste comerciante que possui vários cacifos na Feira de Bandim, a maior da capital. Assolado por várias doenças oportunistas, ele chegou um dia ao CIDA munido de uma bacia para as suas necessidades inadiáveis, pois estava em plena crise de diarreia ininterrupta. Reagiu com coragem face ao resultado do teste. Aceitou e seguiu todos os conselhos dos especialistas e teve resultados imediatos. Quando chegou ao CIDA em pleno ataque diarreico pesava 31 kg. Menos de 3 semanas mais tarde, pesava 51 kg. Incrédulo perante a rapidez da melhoria, ele foi consultar o médico, receando que ele estava a inchar... Hoje ele é um dos membros mais activos da associação Nova Vida. Fala em convencer as suas duas mulheres de fazer o teste.
Mas nem tudo é mar de rosas. Muitos seropositivos escondem o seu estatuto
serológico, e muitos são discriminados e até empurrados para um fim prematuro,
como no caso desta jovem rapariga de Safim nos arredores de Bissau que morreu no
mês de julho 2002. Referida ao CIDA por um médico, ela aceitou corajosamente o test
positivo e reabilitou-se rapidamente. Ganhou tanta força que voltou à plantação da sua família para fazer a campanha da castanha de caju. Foi novamente atacada por uma
doença oportunista. Mas desta vez, o seu tio impediu a mãe de levar a sua filha ao
CIDA. Ela faleceu depois de uma semana de sofrimento...
Na verdade, viver com a SIDA na Guiné-Bissau é ainda sobreviver num
ambiente social e material hostil. Cada dia que passa é como uma lotaria que os
sobreviventes ganham.



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