sexta-feira, setembro 24, 2004

Uma guerra absurda (1998)

Origem do documento: Portugal em Linha
por Henrique Jorge - Barreiro, Portugal

A Guiné: uma guerra absurda sem fim à vista.

Se tentarmos entrar dentro da história do PAIGC, encontraremos sempre uma quantidade enorme de pontos obscuros e sombrios onde se escondem as nuances que acompanharam os momentos mais agudos da luta interna do partido.
Ainda hoje não é fácil discernir como é que morreu Amílcar Cabral; como é que desaparecem da direcção do partido quase todos os seus mais importantes quadros; quais foram as bases reais dos golpes de 1980 e de 86; qual foi a pressa em eliminar alguns elementos, cuja responsabilidade política deveria ser proporcional aos conhecimentos que tinham sobre estes meandros. Tudo isto é muito pouco claro e estas questões estarão sempre presentes no espírito dos guineenses. Aliás, o desenrolar destes conflitos criou uma aura mística, à volta dos dirigentes vencedores e de alguns dos seus acólitos fiéis, servindo para sacralizar o próprio poder. E o PAIGC, para além destas guerras internas, que marcaram o seu passado, nunca deixou de ter um estilo conspirativo, um ar desconfiado, um ambiente de conversa com a arma na mão, uma forma própria de agir que muito teve a ver com a enorme influência russa, mas que encontrou um terreno fértil na vivência da guerrilha e nos primeiros quinze anos de poder independente. Ainda há pouco tempo, quando a estrutura militar da Guiné já se desfizera numa anarquia irrecuperável, era proibido tirar fotografias à histórica fortaleza da Amura (onde deambolavam umas sonolentas repartições militares instaladas em gabinetes a cair de podres), conhecida de todos os historiadores e cuja planta está publicada em múltiplas fontes. Mas este espírito foi passando com dois factores fundamentais: o primeiro, e mais decisivo, foi o afastamento dos russos; mas o segundo resulta de uma reacção interna que passou pela tentativa de reorganizar a esclerosada estrutura, dando-lhe uma outra dinâmica e um espírito novo. Os principais obreiros desta tentativa de mudança foram alguns jovens oficiais responsáveis dos três ramos das Forças Armadas que frequentaram escolas em França, Portugal e Estados Unidos e que trouxeram para a Guiné ideias diferentes sobre aspectos organizativos e mesmo sobre as transformações impostas pela passagem da guerrilha anti-colonial à situação de estado soberano.
Quando se dá a revolta encabeçada por Ansumane Mané (7 de Junho de 1998), a posição destes oficiais - apesar de não disporem de grandes forças militares - foi a de defenderem a situação legalmente instituída, a estrutura incipiente de uma democracia precária, mas que poderia ser um ponto de partida para alcançar um regime democrático pleno. A Assembleia Nacional foi eleita e tem de ser respeitada, o governo saiu dessa Assembleia, o Presidente da República foi eleito, e a ONU aceitou todas estas eleições como livres e democráticas, apesar de terem sido evidentes alguns atropelos que foram considerados de pouca monta. Aliás, a posição da comunidade internacional, quanto à revolta militar, foi a de condenação absoluta.

Acontece, no entanto, que nunca ninguém mediu bem a dimensão do conflito que se estava a desenhar, porque pouca gente percebia que o exercício do poder político na Guiné não tinha nenhum sustentáculo real, estando à mercê de qualquer rebelião militar (ou mesmo outra que fosse) de umas centenas de ex-guerrilheiros. De pouco valeu à situação institucional e a Nino Vieira que os chamados "jovens oficiais" ficassem a defender a legalidade, porque quase não tinham forças militares para comandar. A desconfiança de um sistema político esclerosado, de que o próprio Nino faz parte, nunca permitiu que eles dessem andamento às suas ideias sobre o futuro das Forças Armadas, impedindo-os de formar o pessoal necessário. O Presidente sempre quis manter a força das armas nas mãos dos que julgava serem a sua velha guarda, "os seus homens", os guerrilheiros de outros tempos, os que agora se rebelaram contra o seu poder. E é por isso que foi preciso pedir auxílio à Guiné Conakri e ao Senegal, para conseguir dominar aquilo que podia não passar de uma alteração de ordem interna, mas que evoluiu muito rapidamente para uma disputa, onde Ansumane Mané passa de rebelde a defensor da independência da Guiné (dada a presença de um enorme contingente de tropas senegalesas ao lado de Nino Vieira), e os tais oficiais, que ainda esboçaram um esforço de defesa da legalidade democrática, recuaram para uma posição discreta e quase invisível. Aliás o discurso da defesa da legalidade democrática, que foi o discurso oficial do governo guineense e a tónica do Ministro dos Negócios Estrangeiros, retido em Portugal quando do começo da guerra, a certa altura, calou-se. E calou-se porque a dinâmica da guerra ganhou outro rumo, um rumo onde Nino e o governo guineense perderam o controlo do problema, que passou para as mãos dos intervenientes senegaleses. Este argumento - mesmo sendo um argumento fundamental, que acabaria por ser recuperado algum tempo depois - escapou aos novos senhores da guerra que, de maneira nenhuma, se sentiam a defender a legalidade democrática da Guiné-Bissau.

Existem exemplos múltiplos que indiciam a dominação político-militar do Senegal, no terreno da guerra e o suporte francês a essa posição. Sobre a primeira situação podemos ver o que foram as discrepâncias entre as atitudes de Nino e dos senegaleses, em que estes impuseram a sua vontade. Há o caso da retenção do Bispo de Bissau, e há muitos outros exemplos em que quando a paz está a ser discutida, eles levam a cabo uma intensificação dos bombardeamentos. Não se trata só de um autoritarismo inerente a uma presença militar de vulto, trata-se de uma ultrapassagem deliberada do "poder legítimo" e de uma intenção específica de não acabar com a guerra, sem que atinjam os seus objectivos (que não são os de dominar uma rebelião armada), mesmo que isso contrarie os desígnios de Bissau.
O Senegal tem objectivos próprios nesta intervenção armada. Não está lá para ajudar Nino Vieira e, de maneira nenhuma estaria disposto a permitir que uma paz negociada os deixasse de mãos vazias.
Estamos habituados a ouvir dizer que a Guiné-Bissau é um país pobre, que pouco ou nenhum interesse teria para qualquer ambicioso imperialismo local ou mundial. Não é verdade em nenhum aspecto. Não é verdade numa perspectiva economicista, grosseira e vulgar - porque existem riquezas de vária ordem na Guiné (petróleo, bauxite, diamantes,...) - e torna-se ainda menos verdadeiro, quando encaramos as coisas numa perspectiva política e estratégica. Sabemos o que é a preponderância francesa na África Ocidental e sabemos, também, como a Gambia, a Guiné-Bissau e Cabo Verde são excepções "dolorosas" sobre as quais se exerce uma pressão contínua. A política para apanhar estes "recalcitrantes" é agressiva, mas não sei se tem tido efeitos práticos positivos. Na Gambia resultou num fiasco, na Guiné transformou-se no centro de gravidade de uma guerra e em Cabo Verde - como tudo leva a crer - a reacção será, pelo menos, de grande desconfiança, em face do que está a acontecer em Bissau.
No momento presente, a Junta Militar de Ansumane Mané, que começou por defender interesses pessoais e corporativos, encontrou um argumento poderoso na contestação da presença dos soldados senegaleses, que ocupam o território e abusam das populações. Por outro lado, é preciso não esquecer que ele luta pela sua sobrevivência física, contra um poder legalizado pelas eleições de 94, mas que nunca deixou para trás os seus principais inimigos. Nino Vieira nunca foi um homem tolerante e não sei se estará na melhor posição para começar a sê-lo agora: não tendo forças militares nacionais que sustentem o seu poder, ficou refém do auxílio estrangeiro, dependendo dele para sobreviver. Só com uma posição decidida e clara - que apelasse para o direito internacional - poderia afastar os senegaleses da Guiné, mas se o fizer, fica à mercê dos seus inimigos internos. A sua situação e o seu passado político não nos dão grandes esperanças de que se disponha a recuar. A menos que a isso se veja obrigado por quaisquer circunstâncias internas ou externas.

Mas o problema não se completa sem ver qual é a posição do Senegal em face de tudo isto. O Senegal (e/ou a França) está interessado numa influência política ou, mesmo, num domínio claro sobre a Guiné e, nessa perspectiva, este acontecimento surgiu como ouro sobre azul. Mas, por outro lado, aquilo que parecia vir a ser uma acção militar de meia dúzia de dias e de grande facilidade, transformou-se numa guerra sem sucessos e com grandes perdas. Já há quem fale em problemas levantados pela opinião pública senegalesa, por causa deste conflito, mas isso não deve ser visto de forma linear. Primeiro, não é certo que a opinião pública senegalesa tenha, de facto, poder para determinar atitudes políticas. No entanto, o mais importante, é que não nos parece óbvio que a saída de militares para a Guiné Bissau esteja a criar quaisquer constrangimentos no Senegal (para além de uns comentários nos jornais). Com muita frequência, em regimes de democracia precária e em situações de instabilidade política interna, a saída maciça de militares, para missões no estrangeiro, até constitui um factor de segurança para os poderes estabelecidos. Por isso - à parte a excepção improvável de uma pressão da opinião pública interna -, o Senegal não vai querer sair da Guiné, sem que a sua acção tenha as contrapartidas que espera. Quer dizer (quanto a nós), o Senegal não está interessado em que, de um momento para o outro, Nino Vieira e a Junta Militar cheguem a um acordo de paz. Parece-nos, aliás, que tem dado variadíssimos sinais disso, ao intensificar os bombardeamentos ou lançando pequenas ofensivas, sempre que se têm estabelecido conversações entre as partes.
Nestas circunstâncias, quer Ansumane Mané quer Nino Vieira têm poucas saídas pacíficas para o problema que criaram. E digo "criaram" porque, com dimensões diferentes, ambos representam o regime político da Guiné-Bissau dos últimos anos e nenhum deles tem atrás de si uma população entusiasmada a apoiá-los. Nenhum deles constitui uma perspectiva de liberdade ou de melhoria social, nenhum deles se impõe como solução política, nenhum deles representa mais do que a ânsia de poder pessoal, nenhum deles é mais do que a continuidade da corrupção, da arbitrariedade, da prepotência e da morte.

Pensamos que é com este pessimismo que devem ser encaradas as perspectivas dos mediadores, porque nos parece serem estes os problemas que estão em campo e não é possível fazer a paz entre quem não a deseja.
Ansumane Mané começou a sua revolta com uns quatrocentos (cálculo meu) homens. Retirou para a zona de Brá e Bissalanca (relativamente perto de Bissau), para aproveitar as instalações, apoderar-se de uns paióis de material de guerra e controlar o aeroporto. Quem lhe fez frente, nos primeiros dias, foi uma pequena unidade de fuzileiros e uns quantos soldados do exército, reunidos ao acaso. Algum tempo depois chegaram mais de mil soldados senegaleses e cerca de quatrocentos da Guiné Conakri. Neste momento, passado que foi um mês sobre o início da revolta, devem estar na Guiné mais de três mil senegaleses, que bombardeiam todos os dias as posições da Junta Militar, mas não conseguem avançar um metro que seja. A reunião da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) em Abidjan aprovou a extensão do mandato da ECOMOG (força militar da CEDEAO) à Guiné, o que significa - a breve trecho - um aumentar do número de militares estrangeiros no país, com todas as consequências que isso tem para as populações (com a repetição das violações de direitos humanos, que já ocorreram na Libéria e Serra Leoa em situações anteriores). Entretanto mais de duzentos mil guineenses abandonaram Bissau e vivem ao acaso pelas estradas, procurando apoiar-se em familiares ou amigos.
Dentro de pouco tempo faltará o arroz e outros produtos essenciais para a alimentação. As vias de acesso secundárias, que permitem chegar às tabancas mais isoladas, não são asfaltadas e vão ficar impraticáveis para os transportes terrestres. Estamos a um passo da catástrofe e não há perspectivas de parar a guerra. O povo da Guiné, que tão bem conhece o estilo de Nino Vieira e um pouco da história do PAIGC, diz que é preciso um milagre. Que milagre poderá ser?... Um milagre de bom senso?... O êxito de uma mediação internacional?... A proposta de uma saída razoável para quem se sentir sem saída?... Terá de ser tudo isto e, se calhar, muito mais.



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