quinta-feira, setembro 23, 2004

"Portugal e o Futuro"

Origem do documento: "Diário de Notícias", 22 Fev 1999
por José Manuel Barroso

Um golpe de Estado anunciado
Um general cumulado de honrarias e segundo na hierarquia militar atinge a política africana, usando a palavra como arma

Marcelo Caetano relata que, na madrugada do dia 20 de Fevereiro de 1974, ao terminar a leitura de Portugal e o Futuro, "ao fechar o livro", tinha compreendido "que o golpe de Estado militar, cuja marcha eu pressentia há meses, era agora inevitável" (Depoimento, Rio de Janeiro, 1974). De facto, o seu governo - e o regime do Estado Novo - foi derrubado, dois meses depois, pelo golpe militar de 25 de Abril. Apesar disso, a publicação do livro fora autorizada por indicação do próprio Marcelo Caetano. A 22 de Fevereiro de 1974, a primeira edição é posta à venda e esgota-se de imediato.

Marcelo lera bem. Em Portugal e o Futuro, Spínola punha em questão o essencial: a política africana do governo e a representatividade nacional do regime. Afirmando que a solução militar das guerras de África não era possível, defendendo uma autodeterminação das parcelas do império e a constituição de uma federação de Estados lusófonos, e advogando o recurso à consulta popular.

Spínola desempenhava, à data da publicação do livro, as funções de vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o número dois da hierarquia militar. As teses de Portugal e o Futuro eram sustentadas por um despacho elogioso do número um da hierarquia, o general Francisco da Costa Gomes. E, nesse início de 1974, crescia nas Forças Armadas um movimento de contestação ao regime e à sua política africana, apoiado em centenas de oficiais (o Movimento dos Capitães, que faria o 25 de Abril).

Mesmo se a solução federalista desenhada por Spínola, para o problema das guerras em África, não reunia consenso entre os próprios oficiais que se organizavam no Movimento dos Capitães, o livro do general era, indiscutivelmente, "um manifesto lançado pelo Estado-Maior-General" - como escreveu Marcelo Caetano - que iria ter larga repercussão na opinião pública e nos quadros militares. A "defesa do ultramar", como a entendia o governo, a política interna e a "margem de manobra" da política exterior tinham sido atingidas de morte.

Os capitães, que iriam fazer o golpe contra o regime, tinham encontrado um guarda-chuva suficientemente forte para os proteger e dar alento. Um general altamente condecorado e ex-comandante da mais difícil frente de guerra, nomeado um mês antes para um alto cargo militar (criado expressamente para ele pelo governo) erguia-se, sem medo, contra os tabus da política do regime. António de Spínola assumia, publicamente, a necessidade de terminar uma era e começar outra.

O historiador José Medeiros Ferreira disse ao DN que o livro de Spínola "abriu o debate sobre a questão colonial, o que nunca tinha sucedido em Portugal no tempo da ditadura". Para o historiador, "é hoje evidente que as Forças Armadas não estavam de acordo com a guerra pela guerra e que Spínola anunciou a necessidade de uma solução política para a questão, o que era até então uma evidência amordaçada". Opinião corroborada por Ricardo Almada Contreiras, um dos oficiais de marinha ligado ao Movimento dos Capitães: "Foi um marco extraordinariamente importante para toda a movimentação política dos inícios de 1974, já que era a primeira vez, em tempo de guerra, que se colocava o problema ultramarino à discussão pública."

O embaixador Nunes Barata, chefe de gabinete de Spínola, quando oficial miliciano, na Guiné, e depois na presidência, afirma que a importância do livro "foi ter sido escrito naquela altura, mostrando grande coragem política por parte de um general que, ligado ao antigo regime, resolveu intervir - não se limitando a conversas de gabinete e usando a credibilidade do seu prestígio militar e a experiência de governo de um território ultramarino". Diz Nunes Barata: "o que os governantes não quiseram fazer, ele faz, marcando o fim de uma era".

A repercussão de Portugal e o Futuro no próprio Movimento dos Capitães é explicada por um dos operacionais do 25 de Abril, o agora tenente-coronel Rodrigo Sousa e Castro. "Foi um documento político de grande importância para a consciencialização dos oficiais ainda não muito politizados, que provocou nas camadas mais jovens o sentimento de haver uma legitimidade e um sentido na conspiração", disse Sousa e Castro ao DN, assinalando que, a partir da obra de Spínola, "a ideia de risco não desaparecera, mas fora muito atenuada".

Com Portugal e o Futuro o general António de Spínola lançava um grito de alarme contra o regime e respondia à falta de capacidade de Marcelo Caetano para encontrar uma solução política para as guerras em África. E para fazer evoluir o regime no sentido democrático.

Origem do documento: "Diário de Notícias", 22 Fev 1999
por José Manuel Barroso

A última batalha ou o fim da esperança
Quando Spínola regressa da Guiné, no Verão de 1973, a sua esperança na capacidade auto-reformadora do regime havia-se esfumado

Portugal e o Futuro é, se se quiser, o quinto livro de exposição do pensamento do general António de Spínola, sobre a questão ultramarina, a partir da sua experiência governativa na Guiné.

Percorrer o texto dos primeiros quatro - discursos, entrevistas, improvisos, declarações - é mergulhar nas águas que vão correndo, sobre o solo da questão africana, à procura de um caminho, de uma solução. Mas há traços comuns que é possível assinalar, mais finos de início, mais pronunciados depois, até se chegar à formulação de críticas e de propostas de Portugal e o Futuro.

Traços comuns que são: a ideia de que não há vitória militar, a necessidade de reformular a construção política do império, a necessidade da participação das populações e da africanização dos quadros políticos e administrativos. Conhecedor das ideias de Marcelo Caetano, no início dos anos 60, quanto à descentralização e autonomia progressiva dos territórios ultramarinos, Spínola acreditou na capacidade de Marcelo para levar por diante uma política nesse sentido.

Os traços desse pensamento vão-se afirmando à medida que o tempo passa, desde o primeiro livro (Por Uma Guiné Melhor, 1970) até ao que antecede o Portugal e o Futuro (e que tem um título já elucidativo: Por Uma Portugalidade Renovada, 1973). Sublinhe-se: para um comandante-chefe não era comum fazer, como Spínola o fez na Guiné, um discurso de recepção às tropas que chegavam e outro de despedida às que partiam - a todas -, chamando a atenção para o significado da presença em território africano. Sendo que esse significado era já entendido como o de "criar as condições para a paz", subentendendo (aos soldados) ou afirmando (aos oficiais e sargentos) que a solução da guerra seria apenas política.

Sem perder a coragem de dizer as coisas, e de lutar por elas, Spínola fá-lo, primeiro, de forma suave, enquanto espera de Marcelo Caetano o golpe de asa para a mudança. Torna o seu discurso duro, mas ainda comportável num quadro de transição pacífica do regime, quando entende que Marcelo não terá ousadia suficiente para mudar as coisas.

Quando Spínola regressa da Guiné, no Verão de 1973, a sua esperança na capacidade auto-reformadora do regime havia-se esfumado. Mas estava disposto a travar uma última batalha, sempre a partir do interior do sistema, forçando-o a quebrar ou a ceder. Por isso, a aceitação do seu cargo de vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, em Janeiro de 1974, quando o Portugal e o Futuro já estava pronto a ser editado, é um risco calculado: o de dar maior sonoridade ao seu testemunho crítico.



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