quinta-feira, setembro 23, 2004

Mutilação genital feminina

Origem do documento: "Público" 04 Ago 2002
por Sofia Branco

A Sinin Mira Nassiquê é uma organização não-governamental (ONG) guineense que se dedica ao combate contra a MGF. Para tal, criou um projecto que tenta convencer as pessoas de que a prática é um problema de saúde pública. Tendo em conta a importância da fertilidade e da maternidade em África, a associação preocupa-se em demonstrar as consequências graves que a MGF pode implicar para a saúde das mulheres e dos seus bebés.

Optando por não defender o fim do fanado, ritual ancestral completamente enraizado em determinadas comunidades, a Sinin Mira Nassiquê criou, ao contrário, um "fanado alternativo", que inclui todos os pormenores da cerimónia tradicional, excluindo a mutilação genital. As duas iniciativas realizadas até agora pela ONG não tiveram uma adesão muito forte, mas neste caso todos os números contam. O primeiro "fanado alternativo", realizado em 1996, recebeu 55 meninas, que se juntaram para ouvir falar sobre o respeito pelos mais velhos, normas de conduta social, cuidados de higiene corporal e doenças. Ao mesmo tempo, aprenderam a bordar, a dançar e as regras do casamento. Tudo assuntos abordados num fanado tradicional. No ano passado, o "fanado alternativo" atraiu 33 meninas. Durante as cerimónias, a Sinin Mira Nassiquê aproveita para falar dos direitos das crianças com as próprias crianças.

Esta abordagem é considerada pela Sinin Mira Nassiquê como a única porta de entrada num universo ritualístico milenar, enraizado na comunidade e que é legado de mães para filhas.

"Temos consciência que estamos a criar um grupo de exclusão", afirmou a portuguesa Paula da Costa, da Sinin Mira Nassiquê, quando esteve em Lisboa para apresentar o projecto e falar da MGF, a 15 de Maio passado.

Nessa altura, Paula da Costa e a guineense Augusta Mendonça, também da Sinin Mira Nassiquê, mostraram um vídeo da mutilação genital de uma criança (que aparentava ter apenas três ou quatro anos de idade) no Mali, antes de abordarem o tema. Nele, a menina era segurada à força pelas mãos de vários adultos, enquanto o excisador (no caso do Mali um homem) lhe cortava o clítoris, atirando os pedaços para o chão como se de desperdício se tratasse.

Nessa altura, as duas responsáveis da organização invocaram a possibilidade de a MGF ser praticada em Portugal, mas realçaram não ter provas concretas.

Sobre o que acontece na barraca colocada no meio do mato ninguém fala, é "um segredo muito bem guardado", explicou à data Augusta Mendonça. Guineense e excisada aos dez anos de idade, a própria recusou-se a contar ao PUBLICO.PT o que lhe aconteceu no fanado, limitando-se a dizer "que é difícil falar sobre isso".

Outra das preocupações da Sinin Mira Nassiquê passa pela reintegração das fanatecas. Isto porque, na Guiné, "as excisadoras são uma profissão como outra qualquer, com algo de sagrado e misterioso, com muita credibilidade junto da comunidade local", realça Paula da Costa. Muitas das fanatecas são parteiras ao mesmo tempo, "têm conhecimentos de medicina tradicional e muito poder dentro da comunidade".

Para lidar com esta situação, a organização está a tentar perceber os interesses das excisadoras, de forma a reconvertê-las social e economicamente, já que "elas recebem dinheiro por cabeça e géneros depois" de consumada a excisão.

Algumas fanatecas já vieram ter com a Sinin Mira Nassiquê para dizerem que não concordam com a prática e, actualmente, "dão a cara e a voz" contra a excisão. Até agora, a organização já recenseou 33 fanatecas.

Formada em 1996 por um grupo de mulheres guineenses, na maioria muçulmanas, Sinin Mira Nassiquê quer dizer "olhar para a frente, olhar o futuro", explicou Paula da Costa que, há 20 anos, quando visitou a Guiné, se tornou numa das primeiras pessoas a manifestarem-se publicamente contra a excisão. A prática "mexeu" com ela e, duas décadas depois, voltou à Guiné "para fechar o círculo".

Nas suas estadias em países onde a MGF é praticada, nomeadamente na Guiné-Bissau e no Chade, o presidente da AMI, Fernando Nobre, apercebeu-se da "importância crucial" da prática no seio da comunidade. "Os rapazes e as raparigas que não passam pelo ritual são rejeitados. Existe uma noção de comunidade extremamente forte. Ser rejeitado é estar morto, fica-se desprotegido no seio da sociedade".

Na opinião de Fernando Nobre, rituais como o fanado guineense, "de origens imemoriais", foram "consubstanciados" pela ideia de um domínio do homem sobre a mulher. Para reverter estes fenómenos, é preciso "formação e educação, sensibilizar a juventude para os riscos dessas práticas para as mulheres". O presidente da AMI acredita que a MGF "acabará por desaparecer, mercê do protesto que as mulheres dos países onde ela é praticada, a pouco e pouco, ousarão fazer". O desaparecimento da prática resultará da "pressão das próprias mulheres" e não de "pressões externas". Na sua opinião, num "mundo cada vez mais homogeneizado e globalizante", a importância de afirmar a pertença a um determinado grupo tende a diluir-se.



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