sábado, setembro 25, 2004

Fuga geral de Bissau

Origem do documento: "Público", 12 Jun 1998
por Jorge Heitor com António Soares Lopes

Perto de 1300 pessoas, entre portugueses, cabo-verdianos, franceses e cidadãos de outros países, saíram ontem ao anoitecer do porto de Bissau, no navio mercante português "Ponta de Sagres", deixando para trás uma cidade onde a vida se tornou insuportável, após cinco dias de confrontos entre um vasto número de militares revoltosos e as forças leais ao Presidente João Bernardo Vieira, "Nino".

A partida foi precedida por longas horas de confusão na zona portuária, controlada por soldados senegaleses, tendo ainda ficado no cais perto de duas mil pessoas que também gostariam de abandonar o país por via marítima, mas que teriam de aguardar por outros transportes, incluindo um vaso de guerra francês que ia a caminho.

O "Ponta de Sagres", nome terrivelmente simbólico e evocativo da partida, no século XV, para as terras da África Ocidental, ruma agora a Dacar, a capital senegalesa, onde é aguardado ao fim da tarde, decidindo-se depois quem é que aí fica a aguardar a evolução dos acontecimentos e quem é que parte para a Europa por via aérea (ver pág. 4).

Entretanto, por terra, largas dezenas de milhares de guineenses que viviam na capital dirigiram-se para outras regiões do país, desejosos de fugir a uma guerra que está a devastar aquela que era até há pouco uma das mais pacatas capitais africanas, com perto de 300 mil habitantes.

"Homens grandes" da sociedade tradicional guineense, sacerdotes muçulmanos e cristãos, deputados nacionais e diplomatas europeus estão, uma vez mais, a tentar servir de ponte para o diálogo entre o Presidente João Bernardo Vieira, "Nino", e os revoltosos, liderados pelo brigadeiro Ansumane Mané.

As novas tentativas de mediação foram anunciadas ao fim da tarde de ontem, depois de horas dramáticas durante as quais a Embaixada de Portugal em Bissau, na Rua de Lisboa, chegou a estar debaixo de fogo, pois não se encontra muito longe do Palácio do Governo.

Projécteis na cidade

Alguns dos projécteis disparados pelas forças rebeldes foram cair na área entre a Avenida Amílcar Cabral (que liga o Palácio do Governo ao porto) e o Hospital Simão Mendes, causando grande pânico entre todos quantos os ouviram deflagrar.

Outras munições tinham já anteriormente tornado bastante difícil a acostagem do "Ponta de Sagres", que ao longo da manhã e início da tarde procurara colocar-se em condições de receber todos os portugueses desejosos de abandonar Bissau e, ainda, muitos cidadãos de outras nacionalidades, incluindo guineenses que continuam a sentir-se emocionalmente ligados a Portugal.

"Estamos num inferno. A gente não se compreende uns aos outros", desabafou um popular ouvido pela RTP-África, que fez uma impressionante reportagem de tudo quanto se passou na zona portuária, para onde os fugitivos tinham sido conduzidos a partir de pontos de concentração na Sé Catedral, no Centro Cultural Francês e num estabelecimento de ensino.

Um dos grandes receios de muitos observadores era que os mais importantes duelos de artilharia estivessem ainda para acontecer, com a cidade já meio esvaziada. Combates muito mais encarniçados do que os ocorridos durante as cinco primeiras jornadas da revolta, ao longo das quais os dois campos pareceram ir progressivamente medindo forças, num jogo do gato e do rato.

O poderio dos rebeldes é enorme, pois nas unidades sob seu controlo há numeroso armamento e munições para longos dias ou semanas de luta, podendo até contar com a adesão de muitos dos antigos combatentes da luta pela independência que mantiveram uma certa ligação psicológica aos tempos de guerrilha, apesar de há muito terem sido desmobilizados.

Há assim quem receie que vendam muito caro uma eventual derrota, face aos militares ainda leais a "Nino" Vieira e aos estrangeiros que os apoiam, sendo de temer a elevação do número de baixas provocadas por esta guerra às largas centenas.

São anos e anos de tensões acumuladas, com muita gente frustrada por não ter conseguido melhor nível de vida após a sua luta pela proclamação da independência. E essas tensões explodiram agora, perante uma tentativa para modernizar as Forças Armadas, deixando definitivamente de lado muitos dos quadros, hoje com mais de 50 anos, que contribuíram para o fim da administração colonial portuguesa.

A cartada do Senegal

"É uma tragédia para o meu país!", lamentou-se em Lisboa o ministro guineense dos Negócios Estrangeiros, Fernando Delfim da Silva, para quem o importante é os rebeldes - que exigem a demissão do chefe de Estado - deporem as armas, só depois disso se conseguindo negociar como deve ser.

O ministro insurgiu-se, em conferência de imprensa, contra algumas perguntas sobre o apoio militar que o Senegal e a República da Guiné (Conacri) estão a conceder ao Presidente "Nino" Vieira, pois entende que o essencial é a existência de um levantamento militar contra a ordem constitucional e que tudo deve ser feito para acabar com a rebelião.

Para os senegaleses, a entrada na Guiné-Bissau é vista como uma oportunidade de neutralizar a retaguarda da guerrilha há muitos anos em curso na região de Casamansa - que tem fortes simpatias entre os guineenses, incluindo os que se encontram em posições de destaque.

Talvez até por isso mesmo, para não ficar tão dependente do apoio de Dacar, "Nino" Vieira tentou aparentemente contrabalançá-lo aceitando também a colaboração do outro país vizinho, a República da Guiné, situada a sul, e onde o PAIGC chegou a ter a sua principal retaguarda nos tempos da luta armada, à sombra do então Presidente Ahmed Sekou Touré.



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