terça-feira, setembro 21, 2004

Experiência de um missionário entre os Manjacos

Origem do documento:Missionários do Espírito Santo, 29 Jan 2003
por Michel Gerlier

Lisonjeado por ter sido escolhido para participar no nascimento de uma revista que se propõe reflectir sobre as experiências missionárias vividas pelos espiritanos, apetece-me começar a minha colaboração, fazendo uma certa ironia... com o director da revista que me pede para falar dos meus onze anos entre os Manjacos, um sector de “primeira evangelização” ... precisamente no momento em que, a convite da Igreja de Portugal, nos preparamos para celebrar os Cinco Séculos de Evangelização: o que vale é que um pouco de humor nos faz sempre bem. E as situações paradoxais, se por um lado nos fazem sorrir, por outro têm a vantagem de nos tornar humildes, face à realidade ...

É verdade, os Manjacos não são ainda cristãos, mesmo se muitos foram já baptizados há cerca de trinta anos: na Guiné-Bissau, sobretudo no quadro escolar após a “quarta classe”, e no Senegal ou na Gâmbia, em contacto com as migrações sazonais. (e a verdade é que também eu faço parte desses “estúpidos” missionários que “sacramentalizaram muito”, durante os nove anos de serviço pastoral que passei em Pikine!). Espiritanos em Bajob ou Caió, somo-lo sempre, apesar do número impressionante de baptizados (talvez uma dezena de milhares ) em situação de primeira evangelização.

Como é que eu vivo esta realidade?

Em que sentido se orienta a minha reflexão espiritual, filosófica?

Que espero... ou construo com o meu trabalho de todos os dias?

Em que tipo de inculturação procuro apostar?

Sem qualquer pretenção vou tentar explicar-me, mesmo se por vezes tenho a desagradável impressão de ser um falso porta-voz, relativamente ao comportamento missionário habitual ou a um certo número de ideias recebidas nas nossas igrejas de origem.

Entre parêntesis: Tenho plena consciência que as actividades no domínio do desenvolvimento, como perfuração de poços, lançamento de pomares e hortas, construção de centros de promoção feminina, etc... estão intimamente ligados à primeira evangelização; mas aqui limitar-me-ei ao anúncio directo do Evangelho, no encontro com as pessoas, pela palavra e pelo testemunho.

I - ATITUDES, REACÇÕES, SENTIMENTOS MISSIONÁRIOS... INSTINTIVOS

1. UMA EXPERIÊNCIA MISSIONÁRIA APAIXONANTE

Tendo entrado na Congregação com a ideia de ser missionário no sentido clássico da palavra – evangelizar os não cristãos – durante nove anos senti-me bloqueado na animação pastoral de uma imensa paróquia nos subúrbios de Dakar, guardando sempre no coração a nostalgia dessa famosa “primeira evangelização” que a Regra Espiritana coloca em primeiro lugar nos nossos compromissos: “dirigimo-nos de preferência àqueles que ainda não ouviram a mensagem do Evangelho ou mal a ouviram” (Regra de Vida Espiritana, 12). Bem sei que estas situações de primeira evangelização não são necessariamente geográficas, que muitos confrades estão na primeira evangelização no mundo dos media, nas escolas, ou em certos meios da nossa sociedade secularizada; isso não impediu que tenha sempre guardado em mim o sonho de ser missionário no mato, até ao Natal de 1988, em que em Bajob, no cabo do mundo, o sonho se tornou realidade. A missão espiritana de Bajob contava apenas seis anos de vida, mas tinha já um certo desenvolvimento (12 aldeias visitadas, comunidades em embrião, capelas, catequistas...); mas forçoso é reconhecê-lo, tinha também adquirido alguns hábitos que corriam o risco de comprometer o seu futuro: por exemplo, os numerosos baptismos de jovens adolescentes, catequizados em muito pouco tempo, com o entusiasmo dos começos: uns 300 só no ano de 1989!...

No entanto, não se pode esquecer – e é este aspecto que aqui quero sublinhar - a concretização de várias intuições missionárias, que logo me convenceram, porque correspondiam ao que eu próprio sentia no mais fundo do meu coração. Sim, amei Bajob, desde o primeiro dia e dediquei-me totalmente a ela.

Havia primeiramente, a escolha da aldeia para construir a casa da comunidade: uma aldeia muito pequena (250 habitantes), um “beco sem saída” para alguns, e é verdade que a isso não se escapa. Depois havia o terreno pantanoso e os braços de mar. Estava-se condenado a adaptar-se e a aprender a língua, se não ser-se-á infeliz e passar-se-á o tempo a pensar ... na França ou em Portugal! Uma pequena aldeia, no coração da terra manjaca, que conserva ciosamente todos os seus costumes ancestrais, desde o nascimento até à morte.

Havia depois esta ideia fixa, esta mania de aprender o manjaco, indo assim contra a corrente da prática habitual dos missionários que pensavam que era preciso aprender antes de mais nada o crioulo ...

Havia ainda o estilo de vida adoptado pela comunidade: perfeitamente adaptado ao meio ambiente, apenas com um pouco mais de conforto ( um chuveiro e sobretudo uma fossa céptica ). “A nossa habitação, a nossa hospitalidade e maneira de viver são simples e sóbrias. Esta simplicidade de vida aproxima-nos da vida dos pobres” (RVE.71).

A Igreja paroquial pela qual senti logo um amor ciumento e que mantive na sua beleza original: uma mangueira centenária que pode abrigar mais de 300 pessoas! Limitei-me a construir uma vedação para impedir as vacas e as cabras de perturbar as nossas celebrações.

Havia o “pécap” de S Carlos Lwanga, padroeiro da paróquia: uma piedosa escultura, fixada no chão, mesmo diante do altar, debaixo da mangueira sagrada, sobre a qual o responsável da comunidade derrama as libações rituais, todos os anos, no princípio do mês de Junho, no dia da festa dos antepassados.

Havia sobretudo esta vontade de trabalhar na inculturação da mensagem evangélica, particularmente ao nível litúrgico: começando pelos funerais cristãos, integrados realmente nas cerimónias tradicionais, particularmente expressivas na cultura manjaca; mas também o culto dos antepassados, com esta cristianização da festa do Kakao, que se tornou praticamente a festa de Todos os Santos, ao mesmo tempo que faz lembrar a das Rogações: os nossos antepassados na fé, com Carlos Lwanga à frente, intercedem em nosso favor para obtermos de Deus uma boa estação das chuvas, uma colheita abundante, a saúde de todos, etc ....

Fui portanto o continuador de uma experiência missionária apaixonante, que procurei levar mais longe, consciente das ambiguidades inevitáveis a este tipo de experiências.
A minha grande sorte foi ter chegado a Bajob no momento das iniciações. É um rito que no sector de Bajob-Caléquisse tem lugar de 22 em 22 anos, escalonando-se por dezenas de anos, aldeia após aldeia .... 1986 era precisamente o ano que calhava a Bajob.

Os futuros iniciados deviam entrar na mata sagrada a 20 de Março e aí permanecer três meses, sem poder voltar à aldeia. Sabendo que 80 por cento dos iniciados eram cristãos, procurei um meio de entrar na mata, com a ideia de poder organizar celebrações da Palavra e mesmo a Santa Missa, pelo menos em dia de Páscoa. Os cristãos mais velhos tentaram opor-se a este projecto: diziam que não tinha sentido um Padre na mata sagrada. Mas os seus argumentos não me convenciam.

“Dizei antes que não é lugar para um branco”.

- Não, o que não é, é lugar para um Padre.

- Nesse caso, também não é lugar para um cristão, pois um Padre não é senão um cristão ordenado para estar ao serviço dos cristãos, lá onde eles estão. Se os cristãos podem entrar na mata, também o Padre deve poder. Noutro caso, toda a gente fica de fora! ...”

Foi assim que, três meses apenas após a minha chegada, me vi lançado no coração do problema posto pela evangelização dos manjacos: deve um manjaco para se tornar cristão abandonar os seus costumes? .... Porque é que os cristãos mais velhos que vão todos lá, não me querem encontrar aí? Que é que na mata sagrada é contrário à fé em Cristo Ressuscitado? Que tipo de espírito preside a tudo isto? ... Não, eu não iria esperar 22 anos para o compreender. Entrei na mata logo na primeira semana, ajudado por jovens cristãos já iniciados e com a cumplicidade dos velhos “pagãos”; e celebrei a Santa Missa na noite de Páscoa; e anunciei na mata que Jesus Cristo tinha vencido a morte e todos os espíritos maus que conduzem à morte; e eu não estou morto e os iniciados também não; e concluí que o espírito da mata, Dabomanim, não era um diabo mau! ... E levei comigo o meu confrade que não manifestou qualquer resistência.

Recuando a essa data – e já lá vão onze anos! – tudo então me parecia simples e lógico. Queres conhecer um povo? Partilha a sua vida, as suas alegrias e as suas penas, do nascimento à morte! ... Pretendes ter uma mensagem a apresentar que pode pôr em questão certos comportamentos tradicionais? .... Antes de julgares e de legislar, caminha com este povo, o tempo que for preciso ... e vai o mais longe possível, mesmo até à mata sagrada, se te autorizarem.

2. A DIFÍCIL CONVERSÃO DO MISSIONÁRIO

Mas o que a mim me parece simples e lógico, não o é necessariamente para toda a gente. Frequentemente nas reuniões diocesanas ou de sector eu era um porta-voz discordante ou estava em desacordo com um bom número de missionários.

Em Bajob, não só os cristãos fazem a iniciação tradicional como todos os manjacos, mas o próprio Padre os aprova, abençoa e acompanha! Numa missão vizinha, entre os Flupes – cujos costumes são muito parecidos aos dos manjacos - o Padre não só não entra na mata sagrada como proíbe os cristãos de participarem na iniciação, marginalizando-os em nome de Cristo, que no entanto, disse: “vós não sois do mundo, mas estais no mundo”.

Então digo eu: como é que tu, sendo estrangeiro, podes julgar o valor de um costume, se não fazes esforço para o compreender de dentro, no seu contexto, e não em relação ao teu sistema de valores? É preciso ter coragem de ir ao fundo da questão; é preciso correr esse risco, sem dizer de antemão que se trata de coisa “Incompatível com a fé”.

Sabemos nós o que os manjacos têm de abandonar quando se converterem a Jesus? Não estamos nós próprios cheios de contradições e d compromissos com o dinheiro e outros falsos deuses?!

Nós dizemos que eles devem deixar os sacrifícios tradicionais e renunciar aos espíritos ... Evidentemente. Mas se nós classificamos como diabos todos os espíritos dos manjacos, mesmo os seus anjos da guarda, não temos muitas saídas. Mas se em vez de nos agarrarmos à ideia fixa de falar crioulo e de classificar todos os espíritos com a palavra “iran” ( aquele contra o qual é preciso lutar ), nos puséssemos a falar manjaco com manjacos, teríamos o “mbos”, o espírito protector da aldeia (e com que motivo o devemos eliminar?); teríamos depois o “ucai bakaats”, o “ucai mbuka”, a “naakan”, o “ucai Kassere”, o “uramb”, o “najangerum”, o “pewiti”, o “nasunge”, o “ucai baconkan”, que encontramos pouco mais ou menos em todas as aldeias; e ainda outros espíritos benfazejos ou malfazejos, em certas aldeias particulares e que atraem muita gente, como “bakon” de Pugulur, “Kamiem” de Bajob, “Batankaben” de Balomb, etc. Ser-se-ia então um pouco mais comedido nos seus julgamento. Por exemplo: como pensar que o espírito do curandeiro de Katij, a quem já levei dezenas e dezenas de pernas e braços partidos, de mordeduras de serpentes, pode ser um demónio quando todos os doentes regressam curados? E se para isso é necessário sacrificar um franguito e três litros de vinho, qual é o problema? Achamos mais pura a fé dos nossos cristãos, franceses ou portugueses, quando vão directamente à imagem de S. António, sem saudar o Santíssimo Sacramento, para pedir um favor e introduzem algumas moedas no tronco? Quem bebe os três litros do vinho de palma no altar do “ucai”? E quem come o dinheiro de S. António? ...

Diz-se por vezes: como fazer para educar os manjacos? Respondo: mas os manjacos não estiveram à nossa espera para serem educados? É o missionário que está mal educado quando se apresenta sem nenhuma vergonha, com a sua cultura importada, os seus contentores e mesmo as suas igrejas, de chaves na mão!

II - CONVICÇÕES E REFLEXÃO QUE ESTÃO SUBJACENTES
À MNHA MANEIRA DE VIVER A MISSÃO

1. ESPIRITUALIDADE LIBERMANIANA

Como espiritano que sou, sinto-me chamado a viver o encontro com o povo manjaco, exactamente como o P. Libermann o propôs aos missionários de Dakar, na sua carta de 19 de Novembro de 1847: “Despojai-vos da Europa, dos seus costumes, do seu espírito: fazei-vos negros com os negros para os formardes como devem ser, não à maneira da Europa, mas deixando-lhes o que lhes é próprio; agi com eles como servidores para os seus senhores; e isto para os aperfeiçoar, santificar e pouco a pouco, com o tempo, fazerdes deles um povo de Deus. É a isto que S. Paulo chama “fazer-se tudo para todos, a fim de a todos ganhar para Jesus Cristo” (Fil. 2, 6-11).
A “primeira evangelização” começa portanto no coração do missionário que se deve “despojar” da Europa e dos seus costumes. Ela é uma Kenose, à imagem de Cristo. Uma loucura! A loucura da Cruz! Já ouvi pessoas bem colocadas na Congregação tratar os meus predecessores de “doidos”. Penso que é o melhor elogio que se lhes podia fazer. A primeira evangelização não precisa de telefone, nem de fax; nem de computador; ela não tem necessidade d escolas nem de centros de alfabetização; não precisa de construir igrejas nem centros de alojamento para os alunos que estudam em Canchungo; não precisa de escavar poços. Tudo isto, “senhor missionário”, qualquer um o pode fazer, se tiver tempo, meios e competência! .... Mas para estar ao serviço do seu “mestre”, que é o povo manjaco, o missionário tem absoluta necessidade de aprender a sua língua e conhecer os seus costumes, sem, como diz Libermann, “escutar as pessoas que percorrem a costa (...) quando falam dos povos que visitaram, mesmo se aí permaneceram vários anos”; ele deve sentar-se nos “penak” e beber (razoavelmente) do vinho de palma, participar nos seus funerais e noutras cerimónias familiares, comparticipar nas despesas inevitáveis (“pelumpan”), acompanhar os doentes na medicina tradicional; numa palavra: partilhar a vida das pessoas e amá-las como são.

2. PONTO DE VISTA ANTROPOLÓGICO

Menos de S. Tomás e muito mais de Levi-Strauss!
Se a negritude e muito mais a “manjaquitude” não são mais que “acidentes” de uma natureza humana, partilhada por todas as pessoas, o missionário não tem nenhuma razão para hesitar. Ele tem, com efeito, sobre os seus interlocutores analfabetos, a vantagem imensa da ciência escrita; leu livros: Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes, Kierkegaard; pode, portanto, ensinar com toda a imunidade pessoas que têm apenas a má sina de terem nascido atrasadas no tempo! ... E se, além disso,continua convencido que “fora da Igreja não há salvação” e que o Evangelho é directamente a todos os povos da terra, não há alternativa possível para os povos manjacos, senão estudar para recuperar o atraso acumulado ao longo dos séculos, e converter-se ... ou fingir.

É verdade que hoje em dia já ninguém ousa falar desta maneira, mas se nos damos ao trabalho de analisar as tomadas de posição dos missionários nas assembleias e sobretudo as opções concretas no terreno, não será difícil concluir que um bom número deles ignora tudo de antropologia. Age-se como se só houvesse um modelo cultural único: e impõe-se praticamente aos outros, em nome de uma certa concepção de desenvolvimento elaborada na Europa.

Ora, se vou verdadeiramente comunicar com um manjaco para lhe anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo, devo fazer-me convidar para a casa dele e não trasê-lo para a minha casa.
Depois de Levi-Strauss, toda a gente sabe que uma cultura é um sistema extremamente bem organizado, onde todos os elementos se encaixam uns nos outros: economia, política, religião, artes e literatura; a língua é a chave que permite entrar dentro desse universo onde tudo se enquadra: o visível e o invisível, os vivos e os mortos, o passado, o presente e o futuro. Como escreveu Ernest Sambou, “ninguém pode pretender encontrar em profundidade um povo, a sua religião e a sua cultura, sem conhecer a língua que é o prisma de todos esses valores”. (Spiritus, Nº 138, pg. 47)
Não há, portanto, outro caminho para uma “primeira evangelização” senão a vontade de penetrar pouco a pouco no universo cultural do outro e a paciência para aí chegar. É bom que este encontro se faça na alegria da descoberta sem à prioris nem preconceitos, sabendo bem que é impossível separar os elementos uns dos outros, escolher o seu menu, como no restaurante. A religião tradicional, por exemplo, não é uma matéria de opção, no encontro com a cultura manjaca: ela rega e vivifica tudo o resto: economia, saúde, artes, etc.

3. ALGUNS FLASHES TEOLÓGICOS

Trata-se de orientações missiológicas defendidas no Colóquio de Teologia Missionária de Lyon-Francheville (15-23 de Setembro de 1983) a que eu tive a alegria de participar.

Em primeiro lugar, a tomada de posição de Mons. Patrick de Sousa, Bispo de Bénares, na Índia, é uma posição relativa ao hinduismo mas parece-me que se pode aplicar perfeitamente às religiões tradicionais africanas. Mons. Patrick de Sousa concluiu a sua conferência com estas duas frases capitais: “Quando dizemos: venha a nós o vosso Reino, podemos ser levados a considerar as outras religiões como fortalezas a conquistar para ele ou mesmo a arrasar até aos alicerces. Mas nós aprendemos que elas são antes tabernáculos que devem ser abertos com amor, a fim de que o Cristo desconhecido se torne o Senhor reconhecido”. (Spiritus, Nº 138 pg. 39-41)

A segunda tomada de posição é ainda de um Bispo, Mons. Henri Tassier, actual arcebispo de Argel. Desta vez trata-se do Islão. Afirma ele que depois de durante longo tempo “ter feito uma escolha entre o que seriam as “pedras de esperança”, ou sementes do Verbo, na tradição religiosa muçulmana e o que impediria o crente de interiorizar e de espiritualizar a sua vida pessoal e a da comunidade”, a igreja da Argélia composta quase exclusivamente de estrangeiros, deu-se conta, pouco a pouco, que “uma tradição espiritual forma um todo cujos elementos estão unidos uns aos outros. É muito difícil descobrir os valores verdadeiramente comuns (com o cristianismo) ... Os espaços que se julgam comuns não se podem isolar, pois cada elemento está em referência com o todo. Cada religião tem um centro de gravidade e é à volta deste centro que todos os elementos se organizam”. (Spiritus, Nº 138 pg. 39-40)

O terceiro testemunho interessa-me sobremaneira pois vive a sua missão em África numa etnia que permaneceu muito tradicionalista.Toda a conferência do P. Jean Paul Eschlimann merecia ser aqui referida. Aponto apenas algumas passagens que parecem exprimir bem o que eu mesmo procuro viver em Bajob. Depois de ter analisado as “manipulações” de que ele próprio foi objecto por parte do clero animista tradicional e mostrado que “estas manipulações não são mais que a expressão de um dado fundamental: a ideologia da vida, que é “participação”, “oportunidade”, “crescimento e ritmo” e se traduz por “saúde”, “vida longa”, “descendência numerosa”, “riquezas”, etc. o autor interroga-se sobre a evangelização: “confesso, diz ele, que é aqui que eu mais hesito e onde mais dificuldade tenho em sistematizar a minha prática. Tenho contudo uma convicção: se a evangelização é possível, se ela tem sentido, deve processar-se ao nível que atrás descrevi. Por outras palavras, ela deve atingir a dinâmica profunda das religiões-costumes africanas, isto é, a teoria da Vida. Ela não pode ser de modo nenhum a substituição de um rito por outro. A essência da evangelização não pode ser senão o diálogo entre dois espíritos, que eu chamo comummente confronto entre duas lógicas ou dinâmicas. (Spiritus, Nº 138 pg. 39-40 pg. 48) “Que se passa quando o espírito de Jesus está em contacto com o da tradição ancestral? Na minha opinião, produz-se uma fermentação criativa que redispõe os elementos da lógica tradicional numa perspectiva. Nova. Não se trata de importar ou acrescentar elementos estrangeiros à prática ancestral, mas de centrar o sistema sobre o Deus de Jesus Cristo”. (Spiritus, Nº 138 pg. 39-40 pg. 49)


III - PRIMEIRA EVANGELIZAÇÃO E INCULTURAÇÃO ENTRE OS MANJACOS

Para mim, depois de ter passado onze anos em Bajob, a prova está feita: se o anúncio do Evangelho não atinge a lógica profunda da religião tradicional, como diz Eschlimann, haverá no melhor dos casos uma justaposição de comportamentos incoerentes por parte dos neófitos, uma série de sinceridades sucessivas que desapontam o missionário; ou pior ainda uma série de hipocrisias e mentiras, ou o que não é nada melhor, uma destruição progressiva da personalidade.

1. OLHAR CRÍTICO SOBRE A COMUNIDADE DE QUE SOU PASTOR

Falando dos cristãos de Bajob, também eu poderia subscrever o seguinte: “Assumem-se exteriormente como cristãos quando há interesses nisso, mas reagem em conformidade com os esquemas ancestrais quando se trata de viver momentos importantes da vida: nascimento, casamento, doença, sucesso, fracasso, morte”. (Spiritus, Nº 138 pg. 39-40 Pg. 48)
Ainda hoje, os manjacos emigrados para França nos anos 60 e na sua maioria baptizados, enviam um pedaço de cordão umbilical de cada recém-nascido, logo que possível, após o nascimento, para que seja enterrado ao pé das “forquilhas” dos antepassados.

A mala que contem a roupa de uma pessoa falecida no estrangeiro (“uniaman”) chegará ao país algumas semanas depois da sua morte: será colocada sobre a varanda, diante do pano mortuário como se fosse o corpo do defunto, para que um verdadeiro funeral (“poom”) possa ser celebrado. Não conheço nenhuma excepção a esta regra (“undiman”). Sem este rito, o filho perdido (“uniman”) não se poderá juntar aos antepassados.

Saltar a linha traçada à entrada da casa do marido constitui para a jovem esposa um dos ritos essenciais do casamento tradicional. O marido pode estar em França ou Portugal, isso não tem importância: a sua presença não é indispensável. O facto de ser baptizado não muda nada, nem mesmo a problemática.

Quanto às doenças, os insucessos, ou o desejo de sucesso, o recurso aos “bapene” (videntes), aos “bamanam” (sacerdotes tradicionais) e finalmente aos “gêcai” (espíritos mediadores) é diário. Augusto, “amaanan” de Bajob, é baptizado, casado pela Igreja e sua esposa Leontina é a cozinheira da missão; Brimel, “napene” de Biepar foi baptizado por mim, 4 ou 5 anos antes de ter acedido a este serviço de vidente tradicional.

Poderia multiplicar os exemplos deste esquartejamento diário da maior parte doa cristãos manjacos. Mas a melhor prova que posso mostrar do dinamismo da religião tradicional e da sua força englobante de todas as actividades, pensamentos e sentimentos do indivíduo é a história das velhas mulheres de Bajob, baptizadas em 1984, depois de um catecumenato um pouco apressado e em situações matrimoniais não muito católicas. Não sei o que as levou a querer ou a aceitar o baptismo. Mas o certo é que elas nunca vão à Missa nem participam em qualquer actividade da comunidade cristã. Pelo contrário, nunca faltam ao “bekuit” semanal (libações ao seu “ucai”); são elas que vão consultar os videntes para todos os problemas de saúde dos seus filhos e crianças; delas dependem os sacrifícios rituais que serão necessariamente prescritos depois deste género de consultas; não passa uma semana sem que elas assegurem o serviço das danças fúnebres (que devem durar pelo menos 24 horas). Estas mães cristãs permanecem profundamente animistas. Poderão elas converter-se verdadeiramente? E se sim, como poderiam exprimir esta conversão? Andei muito tempo com esta questão às voltas na minha cabeça. Depois destes anos todos, cheguei à conclusão que é impossível a um velho manjaco tornar-se cristão, se tornar-se cristão significar renunciar a tudo o que estruturou a sua vida desde que nasceu. Trata-se de uma tal revolução que é praticamente impensável ... salvo se o sacrifício de Jesus ( a Missa ) for tão falante como o dos antepassados ( mas aqui come-se pouco e ... bebe-se ainda menos! ); salvo se obtenho pela oração o pão diário e a possibilidade de satisfazer todas as minhas necessidades ( a Caritas jogou um papel destes durante um certo tempo! Mas quando o maná acaba, os “crentes” voltam às cebolas do Egipto!).

Sim, Mons. Tessier e o P. Eschlimann têm razão: todas as religiões funcionam como sistemas; elas têm uma lógica profunda, uma dinâmica. Tudo vibra ou tudo fica em cacos. Mas será necessário pôr os manjacos em cacos para fazer uma Igreja?

2. PARA O RECONHECIMENTO DE CRISTO NO CORAÇÃO DA TRADIÇÃO MANJACA

Se é verdade que a religião tradicional tem uma grande “capacidade de recuperação e de manipulação”, até de sincretismo,”é necessário apresentar-lhe um Cristo atraente, sedutor, pela qualidade de vida que propõe ou permite esperar”. (Spiritus, Nº 138 pg. 39-40 Pg. 47) Ao princípio ela irá classificá-lo algures na sua lista impressionante de intermediários para chegar a Deus. Mas terá ao menos, o estatuto de antepassado ou de espírito benéfico, o que já não é mau.

Graças ao dom da Fé e a acção do Espírito Santo no coração do catecúmeno, outros O colocarão rapidamente acima dos outros espíritos, com papel de mediador privilegiado ... e pouco a pouco acabarão por O aceitar e reconhecer como único mediador entre Deus e os homens, como Salvador universal. Então os outros espíritos surgirão encadeados na sequência de Cristo, subordinados à Sua mediação única, submetidos à lógica nova do Amor (Cf. O cortejo triunfal de Cristo Crucificado. Col. 2,15).

É por isso que me parece que o missionário deve acabar de uma vez por todas com jogar ao D. Quixote, fazendo guerra contra as práticas tradicionais sejam quais forem. Face à lógica cristã, que não é uma teoria nova, mas uma vida nova em Cristo, cujo principal protagonista é o Espírito Santo, o que não tem futuro na religião tradicional desaparecerá por si mesmo. O que é bom para o homem manjacosubsistirá e encontrará pouco a pouco o seu verdadeiro lugar.

É preciso anunciar Jesus Cristo pela palavra e pelo exemplo, sem complexos, mas um Cristo nu, despido de 20 séculos da roupagem cultural ocidental, o Cristo crucificado. O que supõe da parte do missionário um grande espírito crítico para despojar de si mesmo tudo o que é Cristo-à-sua-medida (e não nos falta engenho para justificar práticas por vezes bem heterodoxas, como dinheiro, poder, etc) ...

Por outro lado, é necessário ir ao encontro dos manjacos na sua vida real, isto é, nos seus momentos mais densos, onde o passado e o presente se encontram, quando se faz a junção entre o visível e o invisível. Por exemplo: na altura das iniciações, quando os jovens adolescentes ascendem à maturidade social e religiosa; ou no exercício da medicina tradicional, quando o curandeiro faz o diagnóstico, em diálogo com o seu “ucai”; ou no momento em que a jovem casada põe o pé sobre a cabeça do frango e o sangue jorra. Em todos estes casos, o missionário encontra-se face a face com um espírito. Não há um único comportamento entre os manjacos que não seja precedido ou acompanhado de um “kabol” (sacrifício).

Se eu só encontro os manjacos na minha Igreja, na minha escola ou no meu centro cultural ... e se, além disso, só os encontro falando-lhes crioulo, eu perco completamente o tempo essencial da “primeira evangelização”. As pessoas interessadas nos meus programas, fingirão concordar comigo ... mas sempre que lhes apareça qualquer problema elas irão onde vão tradicionalmente, sem me pedir licença e sem me avisar.

Por isso, prefiro caminhar com eles, incluindo na mata sagrada. E defendo o direito ao erro para mim e para os outros missionários de Cristo que querem viver esta experiência de encontro. “Têm as mãos limpas, mas não têm mãos”, dizia Péguy, falando dos cristãos face à política. Poder-se-ia dizer o mesmo neste caso: quantos missionários ousam sujar as mãos frequentando realmente a religião tradicional?! O adágio”na dúvida, abstem-te” me parece a pior das atitudes missionárias. É preciso mergulhar. “Faz-te ao largo”, disse Jesus. Ele não disse: toma um banho ligeiro na praia, à espera que estejam reunidas todas as condições para evangelizar correctamente os manjacos. É preciso ir lá onde se joga o destino dos homens. E em vez de estar sempre a falar de doutrina e ortodoxia, falemos antes de ortopraxis missionária: fidelidade ao Verbo Incarnado, o Cristo da fé ... que deve ser anunciado aos manjacos tais como são e não como nós queremos que eles sejam.

3. PRATICAMENTE EM BAJOB

Começamos com as comunidades da aldeia (uma dezena) que estão já estruturadas com os diferentes ministérios indispensáveis à vida eclesial (no que diz respeito à liturgia, catequese, caridade) a dar alguns passos no sentido de um cristianismo mais inculturado.

Temos antes de mais nada tudo o que diz respeito ao culto dos antepassados, com a festa do Kakao como ponto culminante (cf. atrás). Foi o mais fácil de lançar.

Temos depois toda uma pesquisa feita à volta da Sexta-feira Santa. A morte de Cristo deveria ser celebrada pelo menos tão bem como a de um grande da aldeia! O ideal seria que as cerimónias dos funerais de Cristo excedessem largamente as do comum dos mortais. Mas não estou descontente com o que já conseguimos: à hora em que o sol em que o sol recalcitra a terra (“uson uno”), cada comunidade sai da aldeia e encaminha-se para Betenta, uma aldeia central, meditando sobre o caminho da Cruz do Senhor. Pelas três horas da tarde, todos os parentes e amigos do defunto (cristãos, catecumenos, simpatizantes) se reúnem: talvez 500 ou 600 pessoas. Os ritos previstos pela Igreja são escrupulosamente respeitados em sinal de comunhão com as outras igrejas que se reúnem ao mesmo tempo pelo mundo inteiro; mas são vividos num ambiente tipicamente manjaco criado pelos cânticos e os instrumentos de música, diferentes dos que se usam nas liturgias ordinárias.

Depois da adoração da Cruz, quando os cantos fúnebres se fazem ouvir acompanhados pelos “gênjeru”, espécie de castanholas que só as mulheres idosas podem utilizar, as jovens põem-se a dançar espontaneamente; em seguida, é à volta do “bombolon” de falar, exactamente como nos enterros; então, os da idade de Jesus (os jovens entre os 30-35 anos)entram na dança e evocam por mímica a vida e a mensagem daquele que viram chorar.

Menos visível, mas mais profunda me parece a pesquisa à volta do sacrifício de Cristo (Cruz e Missa).Penso que não se passa um dia sem que haja numa das aldeias que compõem a minha paróquia, um “Kabol” ou seja, o sacrifício ritual de uma vaca, uma cabra ou um porco. Diga-se de passagem, que há muito tempo deixei de fazer comentários amargos sobre o desperdício de dinheiro que representam todos estes sacrifícios, dinheiro que seria sem dúvida melhor empregado nos poços, em estradas ou em medicamentos. Num mundo profundamente religioso, não se pensa dessa maneira; aliás o desenvolvimento económico do país manjaco não é o meu problema.

Pelo contrário, vítimas oferecidas, sangue derramado, pecados perdoados, são realidades vividas diariamente, que não podem deixar de preparar o espírito e os corações para compreender o mistério da Cruz de Cristo. E aqui gostaria de acentuar uma coisa que me parece muito importante: a inculturação da mensagem evangélica começa pela escolha das palavras, quando se procura traduzir a Palavra de Deus. Se para traduzir “sumo sacerdote” na Carta aos Hebreus se escolhe qualquer coisa como “padri grandi” (“nauguran nayak em manjaco), a imaginação do povo pensará antes na pessoa do Bispo ou de um missionário qualquer. Mas se se toma a palavra que designa o sacerdote tradicional (“amaanaa” em manjaco) os manjacos são interpelados no mais profundo da sua experiência religiosa, mesmo sem para isso precisarem de uma homilia quilométrica. Se Jesus está em vez do “anaanaa” e o “béjakan” ( a vítima) e que o sangue foi derramado uma vez por todas para o perdão dos pecados, não há mais necessidade de sacrifícios animais; e a Eucaristia é a oportunidade que nos é oferecida por Jesus para tomar parte cada dia no seu “béjakan”.

CONCLUSÃO

Não tenho a pretensão de ter encontrado a chave para penetrar na cultura manjaca e o segredo para a evangelizar. Penso mesmo que o que fizemos em Bajob não passa de pequenos passos, aliásbem tímidos. Os cristãos manjacos de amanhã, se guardarem amor pela sua tradição, saberão melhor que os estrangeiros inculturar a mensagem do Evangelho. Ficam-me ainda muitas sombras: tudo o que anda à volta dos videntes, dos comedores de almas, dos contratos com certos espíritos que podem conduzir à morte, das almas do outro mundo, da interrogação dos mortos, do casamento, da poligamia, etc.; fica sobretudo o problema delicado dos cristãos baptizados que aceitam “ministérios” na religião tradicional.
Augusto, o sacerdote tradicional e Brimel, o vidente, poderão exercer o seu serviço com o espírito de Cristo? Gostaria de responder que sim, mas sei que seria mais por simpatia do que por convicção. Quando se bebeu da Fonte da Água Viva, pode-se por acaso voltar a matar a sede nas águas estagnantes das matas sagradas ou dos altares tradicionais?
A última palavra, porém, ainda não foi dita.

Nazário Diatta, padre diola e missionário espiritano, abre, também ele, perspectivas completamente inéditas, num artigo intitulado “Um cumprimento recíproco” (Spiritus, Nº 133, pg. 401-402) Batendo-se contra a política do tudo ou nada na prática missionária, escreve ele: “Haveria contradição fundamental, ou até impossibilidade de Clarice e Afael-Etan aceitarem o sacerdócio do altar da fecundidade e a iniciação, aspirando ao mesmo tempo ao baptismo? Haverá incompatibilidade em ser sacerdote dum altar de religião tradicional e dum altar cristão “celebrando” a Eucaristia? (Spiritus, Nº 133, pg. 401-402) É preciso, segundo ele, situar a religião tradicional e o cristianismo na mesma trajectória, o particular em relação ao universal. E conclui: “a religião tradicional deveria dar ao cristianismo o seu cumprimento no que diz respeito à sua forma e expressão cultural para ser melhor captado onde é pregado. A religião tradicional vai completar, realizar o cristianismo para que ele se incarne concretamente no meio da vida, pois será mais fácil compreendê-lo através dos símbolos e das categorias do pensamento desse meio. Ela é-lhe indispensável. Quem melhor que o sacerdote tradicional, instruído sobre os mistérios cristãos e neles participando plenamente pelos sacramentos, poderia fazer esse diálogo?” (Spiritus, Nº 133, pg. 401-402)

Quanto a Bajob, diria que resta ainda um longo discernimento afazer pelos próprios cristãos manjacos. Eles o farão à luz do Evangelho, mas graças também à prática positiva que têm da religião tradicional: na esperança de que o Espírito do Senhor, pouco a pouco, os conduzirá à verdade total. (Jo. 16, 13)

Bajob, 30 de Outubro de 1996



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