sexta-feira, setembro 17, 2004

Colónia Penal do Tarrafal

Origem do documento: Público, 25.01.2004
por São José Almeida

TARRAFAL. "A MORTE LENTA" COMO CONDENAÇÃO POLÍTICA

"Há cinquenta anos, a 26 de Janeiro de 1954, Francisco Miguel Duarte, dirigente do PCP, embarcava, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, com destino a Lisboa, onde continuaria preso, primeiro no Aljube, depois transferido para Caxias. Com a saída de Chico Miguel, que aí permanecera sozinho durante seis meses, estava consumado o encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal, oficialmente denominado Colónia Penal de Cabo Verde, a mais temível e brutal prisão política do fascismo que ficou para a história como o "Campo da Morte Lenta".
Terminava assim o regime prisional arbitrário e concentracionário que durante mais de dezassete anos recebeu um total de 340 presos e que, devido à crueldade e atrocidade do regime que aí vigorava, levou à morte de 32 homens e à contracção de doenças crónicas por quase todos os sobreviventes.
Criado a 29 de Outubro de 1936, no âmbito da reestruturação do regime prisional do Estado Novo, era então ministro do Interior Mário Pais de Sousa (ocupou a pasta de 1936 a 1944), o Tarrafal nunca foi tutelado pelo ministro que supostamente deveria fazê-lo. Estava, sim, sob tutela da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) e, a partir de 1945, da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE)- à semelhança de todas as prisões políticas do fascismo-, e era dirigido directamente por Agostinho Lourenço, director da PVDE e depois da PIDE entre 1933 e 1956".

"A negação do Estado de Direito

O carácter excepcional e o requinte da barbárie que era aplicada aos presos levou desde o seu início a que o campo fosse comparado aos campos de concentração nazis, não obstante não haver em Portugal pena de morte.
"O que mais aproximava a Colónia Penal de Cabo Verde dos campos de concentração nazis seus contemporâneos era essa faceta de depósito arbitrário de adversários do regime, sem outro título jurídico do que a "detenção preventiva" decidida pela polícia política (a lei ainda não previa as medidas de segurança, que vão surgir nos anos 50). Na Alemanha, fora precisamente sobre a "detenção preventiva" ou "detenção de segurança" que assentara o sistema concentracionário, ao abrigo das leis de excepção que logo em 1933 o nazismo tinha substituído com carácter permanente ao Direito. Outro sinal da consolidação do poder arbitrário em Portugal residia no facto de a Colónia Penal de Cabo Verde (além de outras prisões políticas) nunca ter sido colocada na dependência do Ministério da Justiça, como a legislação ordenava, tendo permanecido sempre sob a tutela da PVDE, que nomeava o director do campo, fornecia os 20 ou 30 carcereiros, tinha a seu cargo a manutenção do campo, etc.", diz o historiador José Barreto.
Prossegue o mesmo historiador afirmando que o Tarrafal é "justamente considerado a quinta-essência do terrorismo de Estado sob Salazar", já que é o local onde foram "cometidas as maiores violências e arbitrariedades, bem como criminosas negligências, das quais resultaram em oito anos (1937-45) 30 mortos". Já depois do fim da II Guerra Mundial, nos oito anos seguintes, o número de mortos baixa para dois. Mas é ao Tarrafal que vão parar os principais adversários do regime fascista, sejam eles republicanos, comunistas ou anarco-sindicalistas. Por lá passou a elite dirigente da oposição antifascista à época e entre os 32 mortos do Tarrafal conta-se Mário Castelhano, líder da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e director do jornal diário anarco-sindicalista "A Batalha", que foi preso em 1934 e faleceu em 12 de Outubro de 1940, de febre intestinal, mas também Bento Gonçalves, preso em 1935, secretário-geral do PCP desde 1929 até 11 de Setembro de 1942, data da sua morte, por biliosa".

"A "morte natural" como pena

Enviados para o Tarrafal em regime preventivo, sem acusação ou julgamento e noutros casos com pena já cumprida- segundo os dados avançados por um dos presos, Acácio Tomás Aquino, dos 226 presos a viver no Tarrafal em 1944, 127 estavam ilegais: 72 sem julgamento e 55 já tinham cumprido pena, perfazendo, no total, um excesso de 200 anos-, os oposicionistas a Salazar foram ali submetidos a um regime de "morte natural" provocada por subnutrição, alimentação estragada, falta de medicamentação e de assistência médica, maus tratos, tortura, trabalhos forçados, insalubridade.
Salienta-se, entre os castigos, a "frigideira", local onde os presos eram encerrados dias a fio, duas semanas ou mais, com alimentação racionada, pão ou sopa, depois de terem sido muitas vezes espancados e de onde saíam para a enfermaria. Alguns morreram mesmo na sequência da "frigideira". Pelo menos na primeira fase de funcionamento, ou seja, até ao fim da II Guerra Mundial, o regime foi atroz. O objectivo da morte dos presos nem sequer era ocultado pelos responsáveis do campo e, se o primeiro director lhes dizia abertamente que eles estavam ali para "cair como tordos", já o terceiro assumia que o seu objectivo era que ninguém saísse dali vivo.
O primeiro director foi o capitão Manuel Martins dos Reis. Era director da prisão Forte de São João Baptista, de Angra do Heroísmo, e segue para o Campo, que inaugura com a primeira leva de prisioneiros. Não chega a cumprir a sua comissão de serviço de dois anos, é afastado e substituído pelo adjunto em 17 de Novembro de 1937".

"Uma prisão para a elite da oposição

Com o primeiro director no paquete "Luanda"- que se encheu em Lisboa com presos, depois na Madeira e por fim deixou parte deles em Angra, onde embarcou outros tantos- chegam à ilha de Santiago, a 29 de Outubro de 1936, os primeiros 152 condenados, grupo integrado por 34 marinheiros da Organização Revolucionária da Armada (ORA), próxima do PCP, revoltosos do 8 de Setembro de 1936, presos transferidos de prisões políticas do continente, entre eles os grevistas anarco-sindicalistas do 18 de Janeiro de 1934, 50 detidos em Angra e ainda repatriados na Galiza- um grupo que é composto à época, pela elite das organizações operárias e de oposição, todo o Secretariado do PCP, os dirigentes da Comissão Intersindical, das Juventudes Comunistas e da Confederação Geral do Trabalho.
O segundo director foi José Júlio Silva, adjunto de Manuel dos Reis, que o substitui interinamente e dirige o campo entre 17 de Novembro de 1937 e 20 de Outubro de 1938. Segue-se João da Silva, que integrara uma comissão encarregada de estudar os campos da Alemanha nazi. Tomou posse em Outubro de 1938 e esteve no cargo até Junho de 1940. O período foi, a par do início, o pior para os presos. Segue-se Olegário Antunes, até Janeiro de 1943, e depois, até 1945, Filipe Barros. Em 1945, com o fim da II Guerra Mundial, toma posse Prates da Silva, que permanecerá no cargo até ao fim do campo e exercerá o seu mandato sob outras condições. Mas então a guerra terminara, o campo democrático ganhara. Portugal realinhava a sua estratégia internacional e o Tarrafal suavizava o regime de atrocidades e arbitrariedades, embora não tenha acabado a "frigideira". Logo em 1945 são amnistiados 110 presos- numa primeira amnistia, a dos centenários, em 1940 tinham sido libertados alguns.
Continuam a ser para lá enviados presos. Em 1952, estão no Tarrafal 22 presos, muitos dos que ficaram até ao fim foram os marinheiros da ORA. Outros tinham chegado entretanto e houve casos que lá estiveram por duas vezes, como foi o caso de Francisco Miguel, o irredutível fugitivo das cadeias da PIDE, que aguentou sozinho mais seis meses, até que o Tarrafal fechou, há cinquenta anos. Depois, nos anos 60 reabriu como Campo de Trabalho, para presos políticos das colónias, regime em que se manteve até ao 25 de Abril de 1974.
A 18 de Fevereiro de 1978 os corpos dos 32 presos mortos no Tarrafal foram transladados para Lisboa e foi inaugurado o Mausoléu das Vítimas do Tarrafal no Alto de São João. O Campo, esse, aguarda verba e vontade política para ali erguer um museu em homenagem à luta pelos Direitos Humanos".

UM ESTADO POLICIAL COM PRISÕES POLÍTICAS

"O Salazarismo caracterizou-se, em toda a sua extensão, por constituir-se na base de um Estado fortemente policiado", afirma o historiador Luís Farinha, justificando: "Pela instituição dos designados "delitos políticos e sociais contra a segurança do Estado" conduziu às cadeias privativas da polícia política milhares de homens e mulheres, com a finalidade de prevenir, de exercer a vigilância, de punir. Com a constituição de tribunais especiais, pervertia-se a independência judicial e repetiam-se os maiores entorses jurídicos, com desrespeito total pelas provas e coonestação absoluta de todas as confissões extorquiadas pela polícia política. Pela constituição de presídios políticos, sob a jurisdição arbitrária da polícia, instituía-se o reino do terror e da impunidade, com os presos obrigados a permanecer nas prisões por períodos muito mais longos que aqueles que tinham sido decididos pelo tribunal, antecedidos, na maioria dos casos, por encarceramentos e deportações, sem julgamento prévio, ou mesmo sem culpa formada."
Para sustentar este regime totalitário, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), denominada Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) a partir de 1945 e Direcção-Geral de Segurança (DGS) a partir de 1969, manteve uma rede de prisões políticas, para além, claro está, das suas sedes espalhadas pelo país, onde havia calabouços, como é o caso de Lisboa, Porto, Coimbra, Faro, Leiria, Beja, Setúbal, Funchal, Angra do Heroísmo e colónias.
Além das prisões, a PIDE detinha também campos de concentração, denominados campos prisionais ou colónias prisionais, para onde deportava os presos políticos. Assim, antes da construção do Tarrafal, o degredo era cumprido em Timor, no campo de concentração de Atauro e no de Oe-Kussi-Ambeno, ou no Sul de Angola, no campo que foi criado nas margens do rio Cunene. As prisões para presos políticos foram: a Prisão-Forte de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, a Prisão-Forte de Peniche, em Peniche, a Prisão-Forte de Caxias e o Aljube, em Lisboa. Todas com sistema de solitária como forma de castigo, à semelhança da "frigideira".
Em todos estes locais a PVDE/PIDE/DGS praticava torturas durante o interrogatório aos presos. Numa primeira fase, eram usados espancamentos. Já nos anos 50, a tortura tornou-se mais elaborada e assumiu contornos "científicos". Surgiu o recurso à "tortura do sono", que consistia em não deixar o preso dormir, às vezes por duas semanas, mas também a "tortura da estátua", que passava por obrigar o preso a estar de pé estático, até desmaiar. Os métodos usados passavam, por exemplo, por queimar os presos com cigarros. Era também usual interrogar os presos despidos, sobretudo quando se tratava de mulheres".

O QUOTIDIANO NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DE SALAZAR

"Quando, a 29 de Outubro de 1936, o paquele "Luanda" larga os 152 presos políticos no lugar da Achada Grande, no Norte da ilha de Santiago, em Cabo Verde, a noventa quilómetros da cidade da Praia, o Campo do Tarrafal era apenas um lugar com 200 por 150 metros, cercado por uma barreira de arame farpado. Os presos foram distribuídos, em grupos de doze ou treze, por doze barracas de lona, onde viveram dois anos, até que estas se desfizeram de rotas.
Nesses primeiros tempos a casa-de-banho eram quatro paredes sem telhado que tapavam cinco buracos no chão com cinco latas dentro. Do outro lado do campo, três paredes e um telhado, formando um telheiro, era o espaço destinado à cozinha. Ao ar livre, umas mesas eram o refeitório- mesas que, aliás, serão invariavelmente usadas como material para fazer os caixões.
É nessas condições físicas e sob o clima inclemente da ilha de Santiago que os primeiros presos vão viver o seu embate com o campo, um choque agravado com o regime concentracionário e brutal imposto pelas ordens do primeiro director do campo, Manuel dos Reis, mas que se seguirá com outros directores até ao fim da II Guerra Mundial. Os castigos físicos, a tortura, a má alimentação, a subnutrição, a falta de medicamentação e de assistência médica foram as armas reais que castigaram os presos, quase todos com doenças crónicas e 32 mesmo com a morte.
O castigo arbitrário era um facto quotidiano, aplicado pelos guardas, todos funcionários da PVDE, e acolitados por um batalhão de guardas angolanos. Logo de início, o primeiro director, Manuel dos Reis, ameaçava pôr os presos num círculo de arame ao relento e ao sol, daí lhe advindo a alcunha de "Manuel dos Arames", mas então o castigo da solitária era aplicado na prisão da vila, a pão e água. Não havia ainda "frigideira", construída ainda no fim do consulado de Manuel dos Reis, em 1937. Foi estreada pelos dezassete acusados da primeira tentativa de fuga, depois de três deles terem sido brutalmente espancados, Júlio Fogaça, José Soares e Henrique Ochsemberg. Este último, já em liberdade e anos depois, descobria que tinha uma lesão irreversível na cervical.

O "período agudo"

Após a primeira tentativa de fuga- são conhecidas pelo menos quatro tentativas- viveu-se o chamado "período agudo". Em Agosto de 1937 começou a construção, com trabalho forçado dos presos, da vala à volta do campo, com três metros de largura, acompanhando o arame farpado e sendo completada com um talude de terra onde estavam instaladas as guaritas.
Logo no arranque dos trabalhos o paludismo já atacara os presos, que viviam nas tendas sem mosqueteiros, estando o campo instalado num local repleto de mosquitos transmissores da doença. A situação foi de tal modo grave que os trabalhos da vala foram suspensos, pois apenas menos de dez presos se mantinham de pé em consequência do paludismo e das febres intestinais sem tratamento. Por fim, quando já tinham morrido seis homens e perante a insistência da companhia de soldados angolanos, o director deixa entrar no campo um garrafão de cinco litros de quinino. São então também distribuídos os mosqueteiros, que ao longo dos anos seriam várias vezes retirados como castigo".

"O médico que gostava de passar certidões de óbito

Tudo isto acontecia apesar de o campo ter médico desde 1937: Esmeraldo Pais Prata, com alcunha de o "Tralheira", que só no fim da II Guerra Mundial deixou Cabo Verde. Pais Prata é mesmo apontado como um dos principais responsáveis das arbitrariedades, atrocidades e mortes. Não via os presos e não os medicava e dizia abertamente estar ali para passar certidões de óbito. Em entrevista a Maria Antónia Palla, em 1978, quando da cerimónia de trasladação dos mortos do Tarrafal, Francisco Miguel afirma: "Esmeraldo Pais Prata, um autêntico assassino, que foi médico do campo, dizia que o maior prazer que tinha era passar certidões de óbito."
O acompanhamento médico é assim inexistente. Presos como Virgílio de Sousa e Tomás Aquino e, a partir de 1941, o médico, também preso, Manuel Barbosa dos Reis procuram minorar a situação sem meios.
Dois anos passados, os presos mudaram-se para os pavilhões de alvenaria. Seguiu-se a construção, já pelo trabalho forçado dos presos, do posto médico, que funcionava como casa mortuária, da parede da frente fechando a cozinha e do anexo que funcionava como talho e salsicharia. Assim como das oficinas.

Sem água e sem higiene

As condições sanitárias do campo eram péssimas e total a insalubridade. Os dejectos nos primeiros dois anos eram despejados pelos presos no mar e só depois foi construída uma fossa. A água vinha do poço do Chão Bom, a 700 metros do campo, mas era salobra. O seu transporte inicialmente era feito por nativos, mas rapidamente passou a ser feita pelos presos.
Primeiro, em braços, com toros e latas, depois bidões, quando o segundo director do campo comprou um carro puxado por um boi. Por fim, usando o caminho-de-ferro que foi construído para transporte de pedras e mercadorias. A água vinha então nas zorras, empurradas por presos, e transportavam bidões de 200 litros. A água era assim muito racionada. Os presos tomavam banho com um litro apenas. E, no início, filtravam-na e ferviam-na às escondidas dos guardas.

Cédulas em vez de dinheiro

Já as encomendas das famílias eram controladas logo pelo primeiro director, que roubava os produtos, vendendo-os depois aos presos, desde conservas a papel. O dinheiro enviado pelos familiares, necessário para pagar quase tudo o que consumiam, era também retido. O primeiro director introduziu uma prática que perdurou até ao fim: o dinheiro ficava em contra-corrente na secretaria e os presos usavam umas cédulas no campo que nada valiam fora.
Os livros, esses, foram todos apreendidos e só escaparam os poucos que os presos esconderam. A correspondência era também apreendida e censurada.
Com o interinato do segundo director, José Júlio Silva, entre 17 de Novembro de 1937 e 20 de Outubro de 1938, a situação melhora ligeiramente. Começaram a poder escrever e receber correio e encomendas. Passaram também a poder cozinhar, mas o regime alimentar à base de arroz, vindo da Guiné, raramente melhorou, o peixe era quase sempre albacora e a carne era muitas vezes de rezes doentes. O pão era considerado o melhor alimento fornecido pela direcção. É comprado o carro com um boi para a água. Alguns livros são devolvidos. É neste período que os presos passam para os pavilhões de pedra e abre o posto médico e casa mortuária conhecido como a Mitra, abrem também as oficinas.

A "Brigada Brava"

Mas com o terceiro director, João da Silva, entre Outubro de 1938 e Junho de 1940 as proibições voltaram, mais rígidas. As encomentas e a correspondência foram de novo apreendidas. A comida piorou em qualidade e diminuiu em quantidade. E foi criada a "Brigada Brava", uma forma de trabalhos forçados para presos doentes, os quais só bebiam água e urinavam com autorização dos guardas e cavavam o dia todo. Durou 45 dias. Acabou porque só dois homens se mantinham de pé. Esta foi a forma máxima de trabalho forçado, que, todavia, existiu sempre durante os primeiros oito anos.
O regime de terror é aligeirado no mandato de Olegário Antunes, de Junho de 1940 a Janeiro de 1943. É nesta fase que, por exemplo, foi construída, sob direcção de Bento Gonçalves, a central de gelo, para servir a ilha. Com Olegário Antunes as rezes doentes passaram a ser deitadas ao mar e deixaram de ser comidas. Os livros não só foram devolvidos, como os presos puderam organizar uma biblioteca de 700 volumes- Alberto Araújo foi o primeiro bibliotecário. Estas regalias mantêm-se praticamente todas com o director seguinte, Filipe Barros, que esteve no Tarrafal entre 1943 e 1945, mas a comida volta a piorar. Porém, a partir de 1944 podem começar a receber e ler jornais.

Actividade política e intelectual

Apesar de tudo, a actividade política e intelectual dentro do campo nunca parou. Os presos organizaram-se em grupos de acordo com as suas ideias políticas que enquadravam politicamente e promoviam a educação mútua. De um lado os republicanos, de outro os anarco-sindicalistas como a Organização Libertária Prisional (OLP) e também o PCP, com a Organização Comunista Prisional do Tarrafal (OCPT). Depois da ruptura com o PCP protagonizada por José de Sousa, líder das Juventudes Comunistas e dirigente da Confederação Intersindical, passou a existir o Agrupamento dos Comunistas Afastados (ACA).
A importância da actividade e produção política dentro do campo foi sempre grande, ou não estivesse aqui presa a elite da oposição. É no Tarrafal que, no início da II Guerra Mundial, Bento Gonçalves defendeu a "Política Nova" e escreve o livro "Duas Palavras". E que, no fim da mesma guerra, Júlio Fogaça e Alberto Araújo defenderam a "Política de Transição", com que disputam o Congresso do PCP de 1946.

O fim do arbítrio

O fim da arbitrariedade e da brutalidade vêm em 1945, quando toma posse o último director do campo, Prates da Silva. Acabam os trabalhos forçados e os presos até têm direito a ouvir rádio. É nessa fase do pós-guerra que, em 1949, Salazar autoriza a visita a Cabo Verde e ao Tarrafal dos pais de Guilherme da Costa Carvalho, membro do Comité Central do PCP. Herculana Carvalho e Luís Alves Carvalho, primeiro corretor da Bolsa do Porto e figura influente, viajam de paquete, levam alimentos e bens. O campo vive uns dias de festa, e no regresso Herculana Carvalho viaja pelo país a distribuir fotos dos presos e notícias pelos seus familiares. Um período que contrasta com os anos de chumbo vividos antes e que levaram Edmundo Pedro, que passou dez anos no "Campo da Morte Lenta", a afirmar ao "Correio da Manhã", em 27 de Abril de 2003: "Quando ouço hoje alguns historiadores de televisão falar na lenda do Tarrafal e fingir que não houve fascismo em Portugal... apetece-me ir-lhes à cara".

In "Memória viva do Tarrafal", Edições Avante!, 1987
por Gilberto Oliveira

A "FRIGIDEIRA"

"A frigideira era uma construção em cimento, fechada, completamente fechada, com as paredes, o chão e o tecto em cimento. Uma caixa rectangular com uns cinco a seis metros de comprimento por três de largura. Um bloco interiormente dividido ao meio por uma parede a separar duas celas, cada uma com a sua porta de ferro, que se abriam em sentidos opostos. As portas de ferro tinham meia dúzia de orificiozinhos de diâmetro inferior a um centímetro por onde se fazia um simulacro de arejamento. Por cima das portas, junto ao tecto, uma pequena fresta gradeada. Mais nada. O arejamento só podia ser feito quando a porta se abrisse para logo ser fechada, o que acontecia apenas de manhã e à tarde no momento da entrega das "refeições", refeições cujo significado, neste caso, exprime um sentido grotesco.
Axfixiava-se ali dentro. A altura, no interior de cada uma das celas, seria de uns dois metros e meio no máximo, era, de facto, uma caixa completamente fechada e durante todo o dia estava sob a acção permanente do sol, por ter sido construída num local completamente isolado e sem hipóteses de sombra. Apanhava sol durante o dia inteiro. À noite, claro, sofria as consequências da temperatura que, em certas épocas do ano, naquela parte do arquipélago, é muito acentuada nas mudanças do dia para a noite.
Quando se estava na frigideira- e aconteceu estarem doze homens numa só cela- a humidade da respiração condensava-se nas paredes por onde escorria.
Não é necessário ter muita imaginação para se fazer uma ideia do que podia acontecer quando doze homens tentavam respirar dentro de uma caixa daquelas, com o sol tropical a aquecer pelo exterior, e onde a evaporação do ar respirado escorria pelas paredes. Os corpos encharcados, o ar sem oxigénio sufocante, a fazer o sangue latejar nas fontes, os peitos oprimidos numa semiasfixia de endoidecer, com toda aquela humidade viscosa, acicatada pelos ácidos pútridos do latão dos dejectos de que todos eram obrigados a servir-se; um buraco enfim, onde os homens eram tratados pior que animais.
Vários homens juntos, uma semana, duas semanas, sem qualquer interrupção, alimentados um dia a pão e água, outro dia a pão e caldo de sopa, alternadamente, como determinava a ordem do dia, que estabelecia o regime dos castigados. Além disso, pior também do que animais, tendo por cama o chão nu e áspero do cimento e por cobertor apenas o peso da atmosfera saturada e pestilenta.
Essa foi uma das invenções do "cristianíssimo" fascismo deste país de brandos costumes".

In "História de Portugal" (1935-1941) Vol. XIV. Lisboa. Editorial Verbo (2000), pág. 73-74
por Joaquim Veríssimo Serrão

A COLÓNIA PENAL DO TARRAFAL

"(...) fora criada em Cabo Verde uma colónia penal para presos políticos e sociais. Após um reconhecimento feito por vários técnicos a cada uma das ilhas do arquipélago, chegou-se à conclusão que o lugar do Tarrafal, na ilha de Santiago, reunia as necessárias condições para a instalação dessa colónia, "sob os pontos de vista higiénico, de vigilância e dos recursos naturais indispensáveis ao seu bom funcionamento" (Diário do Governo, I Série, nº 94, de 23 de Abril de 1936). Pretendia o Governo evitar a dispersão por outras colónias dos réus de crimes políticos, pelo que se entendeu melhor que ficassem doravante instalados no mesmo local. O Ministério das Obras Públicas foi incumbido da feitura da obra, mas não dispunha em Cabo Verde de um organismo próprio para dirigir os trabalhos. Decidiu assim o Governo que a construção seria executada na colónia por meio de verbas especiais atribuídas à Fazenda local.
Estabelecer-se-ia depois a composição da guarda e o isolamento da Colónia Penal de Cabo Verde, cabendo a mesma a uma companhia indígena de Infantaria. Formavam-na 1 capitão, 3 subalternos, 1 primeiro-sargento, 3 segundos-sargentos, 3 primeiros-cabos europeus e 2 segundos-cabos indígenas, com mais 71 soldados também indígenas. O comandante da companhia, no caso de o Governo assim o determinar, podia ser nomeado director da colónia. Havendo dúvidas sobre o organismo do Estado que deveria superintender na colónia penal, determinou o Conselho de Ministros que se fizesse a respectiva entrega ao Ministério da Justiça, enquanto não tivesse início a instalação definitiva. Durante esse período provisório, o Ministério do Interior, por intermédio da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, assumia a responsabilidade da colónia penal para os presos políticos e sociais.
Ao criar a referida colónia penal, mais tarde conhecida por presídio do Tarrafal, o objectivo do Governo foi, sem dúvida, o de evitar a dispersão por outras possessões, como São Tomé e Príncipe, Angola e Timor, dos militares e civis incursos em infracções das leis em vigor. A deportação a que ficaram sujeitos conduzia-os a um local que hoje ninguém põe em dúvida que fosse de clima temperado, onde podiam estabelecer laços de convívio ou planos de colaboração com os seus companheiros de infortúnio. Não cabe neste livro fazer a história do Tarrafal como prisão de pessoas desafectas ao Estado Novo e que ali cumpriam as penas impostas por razões do foro político ou judicial. Na sua grande maioria eram civis pertencentes a organizações clandestinas ou ligadas a movimentos sindicais e que haviam participado em conjuras contra o poder estabelecido. Impõe-se rever a "história do Tarrafal", ainda sujeita a interpretações mais do clima emocional que do político".



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