sábado, setembro 11, 2004

As várias mortes póstumas de Amilcar Cabral

Origem do documento: Expresso, 4 de Julho de 1998

por Manuel Alegre

Alguns sonharam com uma revolução diferente e original, que envolvesse simultaneamente país colonizador e países colonizados, Portugal e os novos Estados de fala portuguesa. Uma revolução que criasse um novo espaço multicontinental, um bloco autónomo num mundo então submetido à lógica das duas superpotências.

Falei com Amílcar Cabral dessa utopia, nas margens do Nilo, no Cairo, em1969.

Tive o privilégio de ser seu amigo, de com ele discutir projectos porventura excessivos, partilhar sonhos, vivências, até mesmo ilusões. Discursei, juntamente com Pedro Soares, no seu funeral, em Conacri. Sinto agora, de novo, uma espécie de luto. Talvez porque aquilo que se passa na Guiné seja a destruição de um certo sonho português para África. Mas principalmente porque tenho a amarga sensação de que estão a matar Amílcar Cabral mais uma vez.

Estas questões não são novas. Já então, por altura da sua primeira morte, falando com o embaixador da Argélia em Conacri, membro da Comissão Internacional de Inquérito, ele tinha-me manifestado a sua surpresa pela intensidade das divisões entre combatentes do PAIGC, sobretudo entre cabo-verdianos e guineenses, que serviram de pano de fundo à infiltração, à manipulação e à complicada conspiração que conduziu ao assassínio do líder do PAIGC.

Não foi só uma morte física, foi já então, de certo modo, uma morte ideológica. Pelo facto de os disparos terem sido feitos por um velho companheiro, pela forma como a PIDE e por certo Sekou Touré puderam utilizar dissensões, ressentimentos e ambições frustradas para lhe desferir o golpe fatal. Mas também pelo ajuste de contas que depois se seguiu no interior do PAIGC.

Recordo-me de um dia, em Argel, ele nos ter dito, a mim e a Piteira Santos, puxando, como era seu hábito, os óculos para a testa, os olhos rasos de lágrimas: «Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido, provavelmente fundador, ainda que guiado pela mão do inimigo». «Quando», repare-se. Ele sabia ou pressentia. E assim foi. Inocêncio Kani tinha sido um dos primeiros do PAICG. For a libertado, depois de se ter comprometido em actos de corrupção, graças à intervenção do próprio Amílcar Cabral, que acreditava na recuperação dos homens. E Cabral foi morto porque não tinha consigo nenhuma arma, ele que era o principal teórico da luta armada africana de libertação. Foi a primeira morte.

A segunda ocorreu com o golpe de Estado em que Nino Vieira depôs o Presidente Luís Cabral e liquidou aquele que foi o grande projecto do fundador do PAIGC: fazer da Guiné e Cabo Verde um único país, pelo menos uma federação ou união de Estados. Sempre com a preocupação de assim dispor de mais força para resistir às tentações hegemónicas do Senegal ou de Conacri.

A outra utopia, de que tantas vezes falámos, era a comunidade dos países de língua portuguesa, países livres, independentes, fazendo uma revolução através dos continentes, com uma capital itinerante, unidos pela língua, pela História, pelos próprios confrontos antigos e pelo recente combate comum contra o fascismo e o colonialismo. Essa revolução multicontinental ficou no tinteiro. A CPLP ainda está só no papel. A terceira morte de Amílcar Cabral tem sido um penoso e contínuo processo de esquecimento. Tem sido sobretudo a contradição entre a degradação da vida política e social da Guiné e tudo o que ele sonhou para ela. O negocismo e a ostentação dos dirigentes, as suas ligações perigosas no exterior, a miséria, a doença, a fome do povo - eis a mais penosa das mortes de Amílcar Cabral.

Mas faltava esta: a luta fratricida entre os velhos companheiros de armas. Pensei nas conversas de Cartum, do Cairo, de Argel, nos antigos e esfarrapados sonhos de revolução e fraternidade. Como se noutro tempo e numa outra vida. E senti que cada bala disparada era um tiro no coração e na memória de Amílcar Cabral, meu irmão, o mais luminoso dirigente africano da sua geração. Estão a matar outra vez o seu ideal. Confesso: eu próprio senti que algo estava a morrer dentro de mim.

Eis senão quando vi a imagem de um velho, amparado, atravessando, com grande dificuldade, os pântanos do interior da Guiné, as pernas e a camisa cheias de lama. Era o bispo de Bissau que vinha falar com os rebeldes, ouvir as suas razões, procurar estabelecer uma ponte entre os irmãos desavindos. Não condenava ninguém, queria apenas compreender e mediar. Então, eu, que não sou propriamente um crente, senti que um pouco do espírito de Amílcar Cabral pairava sobre o velho bispo. Era, no meio daquela terra desolada, uma forma de renascimento. Ao fim de muitas mortes, pelo esforço sobre-humano daquele velho, Amílcar Cabral estava, de certo modo, a ressuscitar. Não sei se chagará para a Guiné renascer como país soberano. Nem para apagar dentro de mim esta espécie de luto, não por um império que já não há, mas por uma comunidade que não chegou a haver, aquela que um dia, em 1969, nas margens do Nilo, quando era possível sonhar, Amílcar Cabral e eu imaginámos.



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