sábado, setembro 25, 2004

As aventuras de um refugiado

Origem do documento: "Público", 12 Jun 1998
por Pedro Rosa Mendes, em Ziguinchor

Bissau temia ontem à noite tornar-se um campo de batalha. A cidade encontra-se quase exclusivamente em poder de dois grupos armados: o que defende "Nino" Vieira, reforçado por tropas senegalesas, e os militares rebeldes poderosamente armados. Ontem, mais de 1500 pessoas, incluindo centenas de portugueses, deixaram a cidade por via marítima, a caminho de Dacar, uma vez que as tentativas de mediação ainda não deram resultado. Entretanto, milhares de outros cidadãos continuam a fugir para o interior do país, em condições muito precárias. Em Zichingor, Casamansa, o enviado do PÚBLICO encontrou-se com refugiados de Bissau.

Osvaldo Silva conseguiu fugir ontem de camião da Guiné-Bissau, cruzando a fronteira de São Domingos para Casamansa, o território senegalês a sul da Gâmbia. Não foi fácil abandonar Bissau, mas quase tão difícil como sair de uma capital em revolta foi dar o último passo para fora do país. "Os militares do Senegal no último posto de controlo não deixavam entrar os guineenses que fugiam", contou o jovem motorista ao PÚBLICO, ontem à noite, em Ziguinchor. "Só diziam que os estrangeiros não entram, mas não davam nenhuma razão para isso. Finalmente, Osvaldo conseguiu passar a fronteira. Com ele, atravessaram também sete portugueses.

Artur Magalhães, primeiro secretário da embaixada de Portugal em Bissau, fazia parte desse grupo. "Fomos apanhados de surpresa em Varela", a zona mais a noroeste da Guiné-Bissau, na fronteira com a Casamansa. Tanto ele como guineenses em fuga só conseguiram passar para o Senegal às 18 horas - antes disso a fronteira "estava fechada para os dois lados", como repetiam ontem ao longo da estrada Dacar-Ziguinchor as entidades policiais que patrulhavam fortemente o percurso.

Osvaldo, para abandonar Bissau, "onde havia tiros para todo o lado", fugiu a pé até ao primeiro curso de água, "como fizeram milhares de pessoas". Ou seja, 24 quilómetros por estrada, para norte. O motorista conseguiu atingir depois Canjungo, a noroeste da capital, e a partir daí fez a viagem de camião "sem problemas". "Ouvi na rádio Bombolom [que entretanto voltou a funcionar] um aviso de Ansumane Mané a pedir às pessoas que saíssem de Bissau, por que eles iam começar a disparar contra a tropa do Nino a partir das 15 horas" de ontem. "Há muita gente que quer fugir, mesmo portugueses, mas não há meios."

"A população está afectada", acrescentou Osvaldo. "Mas no caminho para a fronteira a situação está calma. O problema está lá dentro de Bissau". Osvaldo contou ao PÚBLICO que em Canjungo não se vêem militares nas ruas - "nem do Nino, nem do Mané nem senegaleses", cuja intervenção para salvar o regime do Presidente guineense foi desastradamente confirmada e negada várias vezes nos últimos dias pelo Governo de Dacar. "Estão à espera que o assunto se esclareça para um lado ou para o outro", acrescentou Osvaldo, para explicar a clausura em Canjungo e noutros quartéis do interior.

Esta não é uma situação única. Osvaldo Silva sabe do que fala: para trás, na Guiné-Bissau, ele deixou o pai, comandante de um batalhão das Forças Armadas Guineenses aquartelado mesmo junto à fronteira com o Senegal. "Ele está lá. Eu não consegui falar com ele e não sei de que lado da tropa está, mas sei que está à espera...".

A força de Mané

O pai de Osvaldo é um caso que poderá fazer pensar o Presidente nos aliados de que dispõe: demonstra, como diz o motorista guineense Jean-Paul, que chegou a Ziguinchor há dois dias, que Mané pode vir a ter mais soldados do seu lado dos que aqueles que combatem com ele neste momento em Bissau. O referido comandante de batalhão fez a guerrilha do PAIGC contra Portugal, foi depois guarda-costas de vários dirigentes, incluindo Luís Cabral e Aristides Pereira (em Cabo Verde), "mais tarde do falecido Paulo Correia" e finalmente do próprio Presidente guineense. "O meu pai estava com Nino quando ele tomou o poder". Hoje, talvez não.

Foi de Ziguinchor que partiram as forças senegalesas para Bissau. Em Dacar a imprensa aplaude a manobra e justifica-a com dramatismo, falando do "síndroma serra-leonês", da potencialidade para "um conflito regional" e do desastre que seria para o Senegal uma vitória dos revoltosos guineenses. "O Exército [senegalês] contra duas rebeliões", lia-se numa manchete de um jornal de Dacar, como se a revolta de Bissau fosse um assunto de política interna senegalesa. As forças do movimento que luta há 15 anos pela independência da Casamansa são consideradas próximas de Mané, um guineense nascido na Gâmbia. "Ele é guineense como os outros, não é um mercenário, é um general!", insurge-se Alexandre Silva.

Como outros guineenses de segunda geração, cidadãos senegaleses de Casamansa, a sua abordagem da crise tende a ser bem diferente da dos editorialistas em Dacar: em Ziguinchor há desemprego, há uma forte presença militar e um sentimento de revolta contra o predomínio de pessoas do Norte do país na hierarquia política e militar. Alexandre, que está desempregado e não espera poder aprender nenhuma das profissões que gostaria de ter tido, preenche o tempo livre fazendo fotografia quando há casamentos à mão. Ele, como a comunidade guineense de Ziguinchor, está de olhos postos em Bissau "sem saber o que vai acontecer".

"É muito triste. É uma coisa que ninguém esperava", comenta Osvaldo sobre a rebelião. "Aconteceu de um momento a outro. Agora vamos ver". Em Bissau Osvaldo sabe que há dezenas de mortos. Em Ziguinchor, em noites que zumbem de calor, continua um campeonato diferente. "Golo!", gritam os amigos do motorista, no interior de uma sala escura, atrás de um balcão de mercearia, no bairro de Tilene, uma "Petite Guiné". Osvaldo abandona a conversa sobre a revolta e desaparece na euforia de outro conflito: o jogo Camarões-Nigéria.



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