sábado, julho 09, 2005

Sobre a "Relação da primeira viagem de D. Fr. Vitoriano Portuense à Guiné"

A relação da primeira viagem de D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné (1694)
por Avelino Teixeira da Mota

in "As Viagens do Bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné"
Biblioteca da Expansão Portuguesa
Publicações Alfa, Lisboa, 1989


Nascido no Porto, em 1651, D. Fr. Vitoriano Portuense (I) (chamado no século Vitoriano da Costa) foi sagrado bispo de Cabo Verde em 14 de Setembro de 1687, chegando à ilha de Santiago em 17 de Abril de 1688, onde, uma semana depois, assumiu, além da função eclesiástica, a do governo da província, por motivo da retirada do governador Veríssimo Carvalho da Costa, só entregando este último cargo em 1 de Março de 1690.

D. Pedro 11 escolheu-o para o bispado certamente por lhe conhecer a virtude e a alta capacidade de acção, qualidades muito convenientes para enfrentar a melindrosa situação que no domínio da acção missionária se verificava na Guiné, particularmente em Bissau.

As fontes documentais mostram que pelo menos desde o último quartel do século XVI se fixara junto do porto de Bissau um núcleo de portugueses, com o beneplácito do rei local. Trata-se, sem dúvida, do melhor porto natural do canal do Geba (então chamado rio Grande), aproximadamente no limite navegável para os navios de alto mar. Para montante, os fundos diminuem, aparecem baixos e aumentam as correntes de maré, até surgir mesmo o macaréu, não havendo nenhuma boa enseada nem ao menos abrigos protegidos por ilhas. A estas circunstâncias naturais juntava-se a de servir uma zona densamente povoada, a do «chão» papel-brame-manjaco. Se para leste os Balantas, durante séculos, recusaram o trato directo com os Europeus - o que tornava inviável um estabelecimento português no seu «chão» -, eles frequentavam no entanto as feiras de Bissau na orla leste da ilha, o que permitia algum intercâmbio comercial. Ao invés, os Papéis, Brames e Manjacos desde muito cedo se mostraram receptivos à presença portuguesa e revelaram alta capacidade de aculturação. Cacheu, ao norte, e Bissau, ao sul, foram os portos naturais para o escoadouro dos produtos do seu «chão» e para a entrada das mercadorias estranhas. Além disso, o porto de Bissau estava particularmente bem localizado para servir de base de partida e de apoio da navegação costeira e fluvial, nomeadamente com as ilhas e terra firme do «chão» manjaco e brame, com o arquipélago dos Bijagós, com Geba (importante terminal das caravanas do interior), com o rio Grande de Buba e o «chão» biafada e com o rio Nuno e outros para sul até à Serra Leoa.

A tendência aculturativa dos Papéis, Brames e Manjacos - povos bastante afins na língua, nos costumes e na organização social e política, constituídos em pequenas monarquias - revelou-se desde cedo na proliferação, junto dos núcleos de portugueses e particularmente na actividade marítima e comercial, de grupos de nativos culturalmente situados entre os Europeus e os Africanos. Atraídos pelo prestígio dos «Brancos», queriam também ser considerados e designados como eles. Numa época em que a sociedade portuguesa, para além dos aspectos e práticas puramente religiosas, ainda era, culturalmente, no sentido antropológico mais vasto, profundamente cristã, os aculturados negros, a par da adopção de hábitos individuais, familiares e sociais dos Europeus, foram atraídos pelas práticas religiosas destes e pelas exteriorizações do culto e cultura cristãs. Assim se explica a dupla designação que tiveram - a de «grumetes» (bem significativa da raiz eminentemente marítima da actividade lusitana), que documentalmente parece ser a mais antiga que se regista, e a de «cristãos», que vamos ver surgir com frequência nos documentos seiscentistas a utilizar neste estudo.

Quando os missionários aparecem, logicamente tendem a exercer a sua acção de preferência junto dos pequenos e espalhados núcleos de portugueses, visando não só a assistência espiritual a estes, mas também a irradiação cristã junto dos «grumetes» - quer para lhes purificar os sentimentos e práticas religiosas, quer para, a partir
deles, mais facibnente atingirem a massa animista a que continuavam estreitamente vinculados. Nesses núcleos, portugueses (europeus ou cabo-verdianos) e nativos interpenetram-se rácica e culturalmente, já que não houve apenas uma aculturação dos últimos, mas também dos primeiros, o que muitas vezes deu grandes dores de cabeça aos missionários...

Ao longo do século XVII firma-se a posição do povoado de Bissau como um dos mais importantes núcleos de presença portuguesa e cristã na Guiné. Os primeiros jesuítas que por lá passaram, no começo do século, já encontraram portugueses e «cristãos» e o bom acolhi¬mento do rei da terra: é o caso do p.e Baltasar Barreira em 1604, e do p.e Manuel Álvares, em 1607, os quais revelam que já então o rei se queria converter ao cristianismo, facto que se repetirá nesse século e no seguinte. O P. e Manuel Álvares, na sua Etiópia Menor (parte I, cap. XI), fornece já uma informação tão rica sobre os Papéis que isso revela que ela necessariamente provém de portugueses tendo longo e íntimo contacto com nativos dessa etnia. Aliás, ele refere o rei Fená como grande protector da gente lusitana. Há a salientar, no que ele diz, a tendência para «amarrar» pessoas entre os Papéis (o que autores posteriores associam aos «chais») e a descrição dos ritos no ilhéu do Rei e das cerimónias funerárias; o rei de Bissau era então como imperador do rei de Pecixe, a quem mandava o barrete e o arco, símbolos do poder (publica-se adiante este capítulo, em A, dado constituir o mais antigo texto descritivo dos Papéis, com relativo desenvolvimento, de que temos notícia). Em meados do século XVII era rei Mahana, «muito amigo dos brancos», durante cujo «choro» foram sacriflcadas 104 pessoas, segundo Lemos Coelho (Descrição de 1669, cap. m), que também diz que o rei de Bissau, chamado «rei grande», mandava nos restantes reis da ilha. Seria isso facto de origem remota, ou resultaria de enriquecimento e fortalecimento de poder do chefe local devido ao estabelecimento dos Portugueses nessa zona da ilha?

Voltemos à acção religiosa. A missão dos Jesuítas estiola-se após a morte do p.e Manuel Álvares, em 1617, circunscrevendo a sua acção às ilhas de Cabo Verde, onde residem apenas dois ou três missionários até à extinção, em 1642. Os reis castelhanos não souberam ou não quiseram resolver a situação enquanto dominaram Portugal, que após a Restauração se viu a braços com graves problemas resultantes do domínio exercido pela Espanha junto da Santa Sé. Esgotadas as possibilidades de restaurar a missão jesuítica, D. João IV confiou aos franciscanos da Província da Piedade, em 1656, a tarefa de missionarem na Guiné.

Um destes franciscanos, Fr. André de Faro, encontrou em Bissau, em 1663, um bondoso missionário capuchinho espanhol, Fr. João de Peralta, o qual gozava da estima da gente da terra e baptizou alguns filhos do rei. Era ele um dos vários capuchinhos espanhóis que desde 1647 vieram missionar na Guiné, o que levantou delicados problemas às autoridades portuguesas, dada a guerra em curso com a Espanha. Mesmo feita a paz, em 1668, não terminaram tais dificuldades, até porque não faltava quem os quisesse ver substituídos por missionários portugueses. Assim, em carta de 22 de Julho de 1685, o pároco de Cacheu, p.e António Moreira, referia-se aos religiosos espanhóis em Bissau como não procurando impedir o comércio estrangeiro. O Conselho Ultramarino, a propósito, era do parecer, em 28 de Setembro de 1686, que el-rei devia ordenar ao provincial dos Capuchos da Soledade que enviasse os seus religiosos ao reino de Bissau (II), o que na realidade foi feito, sendo dadas instruções ao capitão-mor de Cacheu para mandar retirar para Cabo Verde os missionários espanhóis, saindo os últimos três da ilha em começos de 1688, pela altura, portanto, em que D. Fr. Vitoriano Portuense chegava a Santiago.

Estes últimos missionários espanhóis estavam longe de se entender com os nativos de Bissau (como se verá mais adiante), o que explicará que el-rei D. Pedro II, em 25 de Dezembro de 1686, recomendasse aos padres da Soledade que tratassem bem aqueles e fossem pacientes com eles.

Nos últimos anos da estada dos capuchinhos espanhóis registou-se uma crescente actividade comercial dos Franceses em Bissau, o que naturalmente alarmou as autoridades portuguesas. Embora tenha sido sobretudo entre os rios Senegal e Gâmbia que durante muito tempo actuaram os Franceses, foi no primeiro deles que a sua presença desde cedo começou a preponderar sobre a de outros europeus, enquanto era partilhada por Ingleses e Holandeses na metade sul daquela área. No entanto, o primeiro estabelecimento francês no rio Senegal só data de 1638, e é com Colbert que surgem as companhias, sendo a primeira com direitos no Senegal a Companhia das lndias Ocidentais (1664), a que sucedeu outra em 1673, dando lugar a terceira em 1681. Em 1677, o vice-almirante D'Estrées tomou a ilha da Gorée aos Holandeses e apoderou-se de Rufisque, Portudal e Joala, o que marca firme intenção de alargar o monopólio gaulês em direcção ao sul. Em 1679, a companhia de então obteve o monopólio de fornecimento de escravos para as Antilhas francesas, e à companhia de 1681 foi outorgado o privilégio para o mesmo por trinta anos. A crescente procura de escravos para as plantações americanas levava naturalmente a Companhia do Senegal a procurar intensificar a sua acção na zona entre o Gâmbia e o rio Grande, de apreciáveis densidades de população, entrando portanto por uma área onde eram grandes os interesses portugueses e onde se situava o seu centro administrativo, Cacheu.

Não é por isso de estranhar que o sobrinho de um dos directores da Companhia do Senegal, Michel Jajolet de La Courbe, tenha empreendido uma viagem por terra do rio Gâmbia a Cacheu, onde chegou em Julho de 1686, e que ai se tenha demorado e ainda mais em Bissau, que só abandonou em Fevereiro de 1687. De Bissau, onde na altura actuava um agente da Companhia, Jean de Lafont, empreendera La Courbe várias viagens por via fluvial, para Geba, para os Bijagós, para Guinala, para Bula e para Cacheu, informando-se minuciosamente das condições locais e das possibilidades comerciais, facto a ter em linha de conta se se atentar em que o mesmo La Courbe exerceu as funções de director-geral da Companhia do Senegal em África nos períodos 1689-1693 e 1709-1710.

O capitão-mor de Cacheu, António de Barros Bezerra, não teve dúvida em se aperceber dos propósitos dos Franceses. Poucos dias depois de La Courbe largar de Bissau, escrevia ele a el-rei, em 4 de Março de 1687, dando-lhe conta do intento daqueles em construir mna fortaleza em Bissau, para o que haviam enviado navios com materiais, o que o referido capitão-mor teria conseguido evitar por intermédio do gentio. O feitor de Cacheu, na mesma data, também dava conta a el-rei do desejo dos Franceses em construir uma fortaleza no ilhéu junto a Bissau (deve ser o ilhéu de Bandim) (III).

O novo governador de Cabo Verde, Veríssimo Carvalho da Costa, em visita à Guiné, também escreveu a el-rei sobre o assunto, em 2 de Abril de 1687, de Cacheu, dando conta das medidas combinadas conjuntamente com o capitão-mor para evitar o estabelecimento dos Franceses.

Uniformemente ajustamos se faça a fortaleza de Bissau, que com ela divertimos aos Franceses a não façam, porque a não ser o rei tão amante de V. Majestade o teriam conseguido, para o que lhe pediram licença, e ele lhe não quis dar, dizendo tinha V. Majestade na sua terra uma igreja que era a sua fortaleza.

E mais adiante acrescenta:

Dou conta a V. Majestade de como tenho mandado a Bissau que dista desta praça 30 léguas a falar com el-rei, e hoje, que se contam 2 de Abril, chegou a resposta dele, a qual com esta remeto a V. Majestade como também o que lhe escrevi, e me consta pela sua carta, e pelas pessoas que lá mandei os alvoroços com que ele e os seus fidalgos e povo receberam a lembrança que V. Majestade tem dele, e a alegria com que também receberão ao padre Fr. Francisco de Pinhel, e mais religiosos missionários, e o vestido e mais coisas que V. Majestade foi servido se lhe mandasse; ele me deu logo o melhor sítio que aquela ilha tem para se fazer a fortaleza... El-rei me enviou o seu general, e seu filho e alguns fidalgos e lhe fiz aquele agasalho que entendi era necessário para os contentar, e agora os remeto que assim mo pede o rei, como também as pessoas que vão dar princípio àquela obra, e duas peças de artilharia e seis soldados, enquanto não vão outras que são as que bastam para tomar posse do lugar determinado para a tal fortificação para a qual nomeamos Manuel Teles de Avelar...

Em carta de 4 de Abril, também o capitão-mor relatava a el-rei estes acontecimentos (IV).

Vê-se, portanto, que já então estavam missionários portugueses em Bissau, pela altura em que D. Fr. Vitoriano Portuense chegava a Santiago, e que o rei da terra (então Bacampolo-Có) se opunha à construção de uma fortaleza pelos Franceses (o que se voltaria a verificar com outros reis), ao passo que autorizava os Portugueses a fazê-lo.

Esta primeira fortificação de Bissau não deve ter sido concluída, pois um alvará real de 15 de Março de 1692 constituía a Capitania de Bissau, com quarenta praças de guarnição, e mandava construir a fortaleza, o que devia ser custeado pela Companhia de Cacheu e Cabo Verde, criada em 3 de Janeiro de 1690.

Esta era a situação quando D. Fr. Vitoriano Portuense partiu para a sua primeira viagem à Guiné, e dela nos dá conta em relação, escrita após o regresso à ilha de Santiago, 25 de Julho de 1694, a qual adiante se publica na íntegra (B) com algumas notas, pelo que aqui nos limitamos a breve resumo.

Decorreu ela de 14 de Fevereiro a 6 de Julho desse mesmo ano, tendo o bispo visitado Bissau, Geba, Cacheu, Farim, Chime e Bolor, indicando, para os quatro primeiros locais, o número de cristãos existentes, respectivamente 700, 1200, 700 e 600, junto deles exercendo intensa acção religiosa. Descreve as entrevistas que teve com Bacampolo-Có, rei de Bissau, que acabara por decidir converter-se ao cristianismo, escrevendo para esse efeito ao rei de Portugal e confiando ao bispo seis dos seus filhos, além do primogénito, mostrando também o desejo de que se fizesse fortaleza portuguesa na sua terra. A terminar, o bispo anuncia a D. Pedro II que, na mesma altura em que escreve, lhe envia o primogénito do rei de Bissau.

NOTAS
I - BARBOSA MACHADO, SENA BARCELOS. JOÃO BARRETO e DIAS DINIS chamam-lhe Fr. Vitoriano do Porto, mas seguimos aqui a forma Fr. Vitoriano Portuense, que é aquela com que assina o próprio prelado nos documentos que dele conhecemos e é a que emprega Fr. Francisco de Santiago no t. 11 da Chronica da Provinda de Nossa Senhora da Soledade.

II - A acção dos missionários espanhóis é largamente narrada, nos começos do século XVIII, na segunda parte da relação do P.. Mateo de Anguiano, editada, sob o título Misiones Capuchinas en Africa, II - Misiones ai Reino de la Zinga, Benin, Arda, Guinea y Sierra Leona, Madrid, 1957, com introdução e notas do Pe. Buenaventura de Carrocera, em que não reinam a imparcialidade e isenção, como mostrou o Pe. Francisco Leite de Faria na critica feita in Studia, 3, Janeiro 1959, pp. 289-308.

III - Arquivo Histórico Ultramarino. Papéis avulsos. Guiné. nos. 184 e 183.

IV - Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis avulsos, Guiné, nos. 187 e 189.



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