domingo, julho 24, 2005

Relação do baptismo de D. Pedro e do começo da segunda viagem à Guiné (1696)

Relação do fervoroso baptismo que pediu e recebeu o venturoso D. Pedro, primeiro rei católico da Ilha de Bissau, e noticia do aumento em que vai a nova cristandade de Guiné
por D. Fr. Vitoriano Portuense

in "As viagens do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné"
por Avelino Teixeira da Mota
Biblioteca da Expansão Portuguesa
Publicações Alfa, S.A., Lisboa, 1989


Nosso rei e Senhor

quero dar a V. Majestade nesta narrativa a nova de maior gosto que pode haver pelo grande zelo que tem a salvação das almas desta África, sentindo o achar-me falto de tempo para expender todas as circunstâncias que conduzem à expressão de matéria tão relevante e de tanto agrado para V. Majestade.

Chegou o príncipe D. Manuel de Portugal, que Deus tem, a 10 de Junho do ano passado, a esta ilha de Bissau, em companhia de religiosos missionários, e, fazendo no Setembro seguinte uma viagem à nossa povoação de Geba, faleceu em poucos dias. E vindo esta triste nova ao rei seu pai, a ouviu (com ser gentio) com uma paciência cristã; ordenou aos de sua casa que sentissem a morte de seu filho e ele a fez também com muitas lágrimas e pediu aos religiosos que lhe fizessem oficios e os mais sufrágios que se costumavam fazer pelos cristãos. Antes que o príncipe se ausentasse e falecesse, trabalhava com os religiosos para que seu pai saísse já das trevas da gentilidade para a luz da fé e pusesse em execução o que mostrava queria e há muitos anos desejava, o que o rei ouvia com semblante sereno e agradável e respondia: «Bem sei, religiosos padres, pela muita comunicação que tenho convosco, que é tal o vosso zelo, que tudo quanto vedes quereis adquirir para Deus. Bem mostra isto o grande cuidado com que andais por esta costa procurando almas; este mesmo vos move a advertir-me o que para a minha alma mais convém; e assim que, suposto, tenho impulsos de o obrar, nunca me tenho resolvido por me parecer que, sendo cristão, impossível é governar meus súbditos gentios sem que manche a pureza da lei católica. Com que o que agora vos peço é que me façais lembrado na presença de Deus, que, se ele for servido dar-me vida e tempo, descobrirá algum remédio com o qual nesta lei que me dizeis viva puro, pois claramente sei pelo que muitos me têm dito e vós agora me inculcais que me não é lícito entregar a Deus parte do meu coração, ficando a outra parte no mundo.»

Vindo o mês de Outubro, em que dois religiosos costumam ir à missão da Serra Leoa, se foram despedir deste rei; e foi para admirar a prática que se fez sobre a matéria das missões e conversão das almas, intimando o muito que estimava esta ocupação e pedindo fizessem nela muito serviço a Deus Nosso Senhor e que quando se recolhessem os havia de visitar, já que eles o buscavam para se despedirem. Andando o rei entre perplexidades sobre o seu baptismo, multiplicando-lhe Deus os auxílios, se deliberou a pô-lo por obra, e, chamando seu filho D. Manuel e um gentio de quem muito se fiava antes da sua ausência para a povoação da Geba, lhe falou desta maneira, e repito as palavras formais para não faltar à verdade da história: «Bem sabeis as instâncias que o grande zelo do vosso padrinho, o rei de Portugal, tem feito sobre o aproveitamento da minha alma e as grandes advertências que os religiosos presentes e passados me fizeram sobre o meu bem, movidos todos de uma afeição caritativa, sem que por isto interviesse merecimento meu. Com que, à vista de semelhantes coisas, quando não fora mais que só para fazer o gosto a vosso padrinho, a quem tanto devo, e ao bispo, que depois que os meus olhos tiveram a dita de o ver não deixou o coração de me estar sempre batendo com a sua lembrança e do que com tanta eficácia lhe prometi, pois se Deus o não trouxera a mostrar-mo e vos levasse consigo, nunca os meus olhos vos veriam tão prendado do rei de Portugal, nem eu veria um anjo que me pedia a minha alma. Com que me resolvo a receber a água do baptismo, para me não perder; com que vos noticio com muito segredo em como na minha vontade há deliberação de o executar, porém com todo o recato, para que não venha a ser motivo de dissenções entre os meus e de hoje em diante vos seja notório que intento secretamente pedir aos missionários sejam servidos receber-me em a congregação dos mais cristãos, dando-me o baptismo.»

Estas palavras falou o rei, a que estavam atentos os dois ouvintes e lhe renderam as graças pela mercê de lhes comunicar negócio de tanto peso, e lhe prometeram ser companheiros em o tempo que o executasse, para terem o gosto de o ver completo.

Depois de alguns dias, quis pôr o rei por obra o seu baptismo; porém, teve três impedimentos: o primeiro, estarem os religiosos do hospício quase todos doentes; o segundo, ser o tempo das lavouras; o terceiro, as mortes gerais dos gentios por toda esta ilha, que ficaram casas inteiras despovoadas e se perderam muitas novidades nos campos, por lhes faltarem donos e ser preciso, conforme ao seu costume, dar o rei mortalhas a todos e assistir nos choros e juntamente por lhe morrer um jagra (I), seu irmão herdeiro do reino, e mais de trinta mulheres do dito rei e outros parentes e finalmente por lhe vir a nova do falecimento do príncipe, seu filho. Em todos estes trabalhos se mostrou o rei com tão grande sofrimento que fazia admirar os religiosos, portando-se de sorte que parecia um perfeitíssimo católico; conformado com as disposições divinas como se fosse ciente dos ditames da lei cristã, tinha para si que estes sucessos eram vozes de Deus que o chamavam. E, sem embargo de que pelas sobreditas causas dilatava o baptismo, nunca o perdia de desejo e da memória e pedia aos religiosos que rogassem a Deus que no meio destas adversidades o não desamparasse.

Sucedeu que em 23 de Janeiro deste ano foram visitar dois religiosos o rei, como muitas vezes faziam; e, chegado já o tempo em que o Altíssimo Senhor queria colher o fruto da semente de auxílios que no coração deste venturoso rei tinha plantado para glória sua, edificação dos cristãos e confusão e exemplo dos gentios, no meio da visita sobreveio ao rei uma inopinada febre com tanta força que o obrigou a reclinar-se. E, aconselhando-lhe os religiosos alguns remédios de que podia usar, se despediram, advertidos pelo rei que rogassem a Deus pela sua saúde e o visitassem amiúde. Dois dias o não foram ver, por lhes dizer o seu alcaide que se achava melhorado, mas, passados eles, o tornaram a visitar, levando consigo o cabo desta povoação, chamado Barnabé Lopes (II), que, sendo gentio, se baptizou há muitos anos e trouxe sua mãe e parentes à cristandade, para que lhe servisse de língua. E, chegados junto à cama do rei, o acharam bem molestado, e ao tempo de se despedirem saiu o rei com uma prática nesta forma, falando com o dito cabo em o seu idioma natural:

«Meu amigo, são muitas vezes as doenças embaixadas que Deus manda aos homens para a composição de sua alma e para emenda de sua vida; e bem vos tem mostrado a experiência que não só nesta ocasião, mas na do estrago de minha casa, as muitas que me tem enviado, conservando-me sempre a vida, sem que semelhantes pesares perturbassem a constância de meu ânimo. Agora me vejo em esta cama e, suposto me tinha valido da prevenção em mandar chamar meu padrasto, Dolebaquet, que, como juiz desinteressado em a minha doença, me desenganasse sobre a sua gravidade, conhecendo que havia algum risco, lhe adverti que, sem demora alguma, vos certificasse para que, como leal amigo, me désseis parte ao padre vigário me quisesse receber em o número dos mais cristãos suas ovelhas e que não consentisse sua caridade se mal lograsse o desejo que tenho de ser cristão; e assim, já que a minha ventura vos fez nesta ocasião juntar, estai de aviso, assim vós como ele, porque não sei se este trabalho em que me vejo será o último com que Deus me chama.» Acabou o rei de falar estas palavras e todos se despediram, consolando a sua aflição com lhe dizerem que estivesse de bom ânimo, que não havia Deus de permitir que seus intentos se não lograssem e que eles lhos haviam de executar, ainda que fosse à custa de perder as suas vidas. E, vindo para o hospício, contaram aos mais religiosos o grande desejo que o rei tinha de ser cristão, e todos de lá por diante se uniam a pedir a Deus Nosso Senhor com muita instância que fossem bem logrados tão bons propósitos.

Passados alguns dias, chegou muito de manhã o alcaide a chamar da parte do rei os religiosos, e, indo a toda a pressa, o acharam já enfermo gravemente, e, dando parte da doença, lhes pediu que por sua caridade vissem se tinha algum remédio. E respondendo os religiosos que lhes parecia ser a sua enfermidade de sangue e que não sabiam outro mais que o das sangrias, tornou a dizer o rei: «Bem entendo que essa vossa palavra é de temerosos, porque se aos cristãos com toda a diligência acudis com os medicamentos que a experiência vos tem ensinado, como a mim vos não atreveis, mormente querendo eu também ser cristão e a gravidade da minha doença me obrigou agora a mandar-vos chamar para que, desde hoje, entregando-me em vossas mãos, como pais obreis o que vos parecer com a minha, já que vos não atreveis com a cura do corpo?» Desta maneira falou o rei em presença de alguns fidalgos, ao que os religiosos responderam:

«Não nos causa pequena admiração este vosso dizer, ó rei, pois vos é notório que em outras ocasiões que nos fazíeis certos de vossos males tratávamos da vossa saúde. Suposto que é tal a pensão de ser rei na vossa terra, que aos mais experimentados é dificultoso o aplicarem curas por serem os f1lhos da vossa pátria tão supersticiosos que, se morrem, afirmam que quem lhes aplicou o remédio por ávidos o privou dela, negando a Deus o poder de dar enfermidades e mortes, e nesta forma sois tão miseráveis que ao desamparo morreis, porque ninguém se atreve a aplicar-vos remédios para não carecer de boa fama e para não ficar privado de seus bens, pois todos se confiscam para os parentes do morto. Porém, não é este o motivo que presumis, porque com a mesma igualdade que em outras ocasiões nos havíeis de achar nesta, se a medicina deste achaque do corpo nos fora tão fácil como é a que pretendeis para a vossa alma; e assim, que desta nos não havemos de descuidar, mas também haveis de advertir estes vossos fidalgos que presentes estão que pretendeis ser cristão, para que pelos seus agoiros não imaginem que a água do baptismo vos tirou a vida e por esta imaginada culpa nos façam seus cativos.»

Ouvindo o rei e os circunstantes estas razões, respondeu por todos um dos fidalgos: «Bem mostra, padre, no que falais, a muita experiência que tendes de nós; porém, haveis de admitir que semelhante mudança, qual é de um rei gentio em rei católico, é negócio de grande peso; como tal, não é bem que semelhante coisa seja deliberada por tão poucos como nós presentes, quando vem a cair em bem ou mal de um reino; e, assim, não nos deixa de magoar o não estar executado semelhante desejo, pois no tempo em que este rei andava com saúde era-lhe facilíssimo, porém no estado em que o vedes enfermo não deixa de ser muito árduo, por se não usar entre nós semelhante coisa, pois devem os reis seguir seus antepassados. Contudo, adverti que, vendo nós as suas ânsias, somos de parecer que façais o que vos roga; mas antes que o executeis se há-de pôr em conselho, por ser negócio mui pesado, e da resolução sereis sabedor; e assim que por ora diferi a petição com a espera para o dia de amanhã.»

Inquieto esteve o rei ouvindo estas palavras e as quis interromper, mas esperou o fim e falou desta maneira: «A mim me toca por vós, reverendos padres, responder a semelhante dizer, porque sei como me devo haver com os meus.» E, sentando-se na cama, disse para os fidalgos: «Ouvido tenho e certamente entendido a pouca vontade que tendes de me ver cristão, mas adverti o grande cuidado com que costumais pôr em execução as últimas vontades, que nada vos desviais do que em suas mortes vos encomendam os defuntos, porque tendes por certo, como a experiência vos tem mostrado, que eles se vêm vingar de nossos corpos e fazendas, ousando tudo. E se isto executais, tanto arriscam por temerem os castigos de vossas chinas, que certamente são os inimigos infernais das almas, não vos pareça que deveis temer menos a vingança do grande Deus dos cristãos se a minha alma se perder por vossa causa. E, posto que vos seja mais notório, vos torno a dizer que não quero morrer gentio, nem que meu corpo seja sepultado com os vossos costumes em o lugar sujo onde vão os outros reis, e desde hoje me entrego nas mãos destes religiosos para que obrem comigo o que costumam fazer com os cristãos, e, se os outros reis o não fizeram, foi por falta de vontade, que nem por isso deixaram de ser senhores de sim. Mas, visto quererdes pôr isto em conselho, seja muito embora, que eu daqui me resolvo a que o meu baptismo, ou público, ou secreto, não há-de passar do dia de amanhã; e podeis estar desenganados, que, se até agora matáveis quarenta ou cinquenta escravos e os enterráveis na sepultura do rei em companhia dum cavalo com o mais precioso de suas alfaias, dizendo ser isto necessário para o serviço do rei no outro mundo, que de hoje em diante ao menos o não haveis de usar comigo, porque daqui vos tiro o domínio de minha pessoa. E assim que, reverendos padres, visto este negócio estar em semelhante termo, vos podeis retirar para o vosso convento com ânimo de me não faltardes com a assistência costumada, que Deus há-de permitir que se cumpram meus desejos sem a menor ofensa de vossas pessoas. E vós, fidalgos, tratai de resolver o que se há-de obrar, já que a minha fortuna chegou a tal extremo que, levantando-me à dignidade de rei, me pôs agora em tal estado que estou agora vassalo de meus vassalos.»

Deu o rei fim à sua prática e os olhos dos religiosos deram princípio às lágrimas, movidos da pena que lhes causava o ver tão forçosos impedimentos em o baptismo do rei; porém, assentaram consigo de lhe não faltar com a assistência para que não morresse sem este sacramento. E, despedindo-se por então, foram a casa do cabo Barnabé Lopes, e dando-lhe de tudo notícia lhe pediram quisesse por serviço de Deus acompanhá-los e fazer neste negócio o que pudesse, por ser de respeito para com os gentios; e vindo nisto com boa vontade se despediram para o seu hospício.

Amanheceu o seguinte dia, em que se havia de definir a resposta do paciente rei, e madrugando os dois religiosos a dizer missa, pedindo a Deus Nosso Senhor sua divina assistência, acabados seus sacrificios se foram a casa do dito cabo, o qual os acompanhou até ao Reino, e, chegados, tiveram logo notícia de que alguns dos fidalgos se tinham retirado, por não se quererem achar na decisão do caso.

Com este inopinado sucesso se mostrou o rei sumamente aflito e assustado, porque pela prática que tinha feito o dia antes, com que os deixou temerosos, imaginou que havia de ter todos da parte do seu desejo, e agora os via retirar e fugir para nem votarem nem darem por bem o que pretendia obrar. E vendo os religiosos estes termos, trataram de consolar o rei e dar-lhe palavra que naquele dia, ainda que fosse com grande perigo seu, o haviam de baptizar, com o que ficou o rei mais consolado, e os religiosos trataram de o catequizar e propor todas as condições que eram necessárias e as disposições precisas para que recebesse frutuosamente muita graça do sagrado baptismo, as quais ele aceitou com excelentes demonstrações de que queria ser verdadeiro filho da Igreja, sem pôr a menor dúvida em tudo quanto os religiosos lhe propuseram, os quais, por dissimulação, voltaram para o hospício. Porém, logo depois da meia-noite do dia seguinte, em que se contavam 4 de Fevereiro, saíram, e, indo buscar ao cabo Barnabé Lopes, foram todos três a casa do rei, o qual só vigiava quando todos dormiam, e, mandando abrir as portas e sendo introduzidos, ordenou o rei a uns fidalgos que se levantaram que se retirassem para outra casa, e, saltando-lhe o coração pelos olhos, falou aos religiosos desta maneira:

«Reverendos padres, não quero ser comprido nesta palavra, porque assaz vos tenho dito o quanto desejo ser cristão, e juntamente tendes alcançado que são verdadeiros os meus afectos e assim que, pela palavra que me tendes dado, é esta a hora em que hei-de ver completos os meus cuidados. Agora só o que vos rogo é que a seu complemento não sirva de embaraço o temor de meus vassalos, porque Deus, como poderoso, vos há-de livrar das mãos destes tiranos.»

Dizendo isto, se levantou em pé um fidalgo (porque ao saírem os mais deles para outra casa reservou alguns de que se fiava para serem testemunhas deste acto) e falou por este modo: «Muito me admiro, rei, da vossa prudência que se atreva a executar semelhante coisa, quando claramente sabeis que se há-de publicar, e, sendo
nós os que vos assistimos, viremos amanhã a ser culpados, maiormente que a vossa doença ainda não é de morte, e quando vos levantardes dela poreis em execução o que agora pretendeis, e, se acaso morrerdes baptizado, dirão que o baptismo vos matou e que temos a culpa, pois fomos consentidores que se vos desse, e ficaremos metidos em um labirinto de trabalhos, e assim não permita a vossa bondade o meter-nos em semelhantes angústias.»

Quis logo responder o rei, mas, como estava fraco, pediu licença Barnabé Lopes para responder por ele, o que o rei concedeu com boa vontade, por ser o dito filho da mesma terra, o qual o fez desta maneira: «Bem notório vos é, fidalgos, que sou eu vosso patrício e parente de muitos de vós outros e que se me não esconderam os vossos fingimentos, pois sou bem experimentado neles e já por mim me não causam admiração, como sabeis. Mas haveis de envergonhar-vos que este conhecimento fosse notório a estes reverendos padres que, não faltando o seu zelo [...] há tantos anos, e vindes dar a conhecer que sois uns pelo rosto e outros pelas costas, devendo-vos entender que são ministros de Deus e que para Ele vos buscam sem interesse algum mais que a salvação de vossas almas. Muitas vezes o tendes assim confessado pela vossa boca, principalmente quando vos acometeram os castigos de Deus na terra e nos frutos os gafanhotos. Vede a quem acudiste pelo auxílio para com Deus e quantas vezes os tendes ocupado e se em alguma foi em vão a vossa súplica? E conhecendo vós isto a olhos claros, que é o que vos cega? Quando claramente sabeis que vos condenais, maiormente que, conforme a vossos ritos, não podeis negar a ninguém na morte o que pede e com maior razão a um rei que vos não leva a terra, mas ai vos fica. Dizeis que não há-de morrer e que depois se poderá baptizar; porventura o que vos agora lhe não permitis lho haveis de consentir depois? Quantas vezes o tendes tirado de pôr isto em conclusão? Demais, que me não podeis afirmar que não morre, porque todas as vezes que semelhantes pessoas chegam entre vós a um estado semelhante, as deixais morrer ao desamparo; sabeis porque usais agora estes enredos? Porque eu não tenho agora cinquenta homens de armas para pôr o fogo a todos os que abrissem a boca, mas não temais que vos falte o castigo, assim de Deus como dos homens, e em resolução de contas sabei que os reverendos padres vêm dispostos a baptizá-los, ainda que seja a troco de perder a vida. Agora vede se vos atreveis a fazer alguma moléstia àqueles que confessais que são Deus na Terra, tão zelosos das almas que Cristo remiu com o seu sangue, que não consente a caridade que nenhuma se perca; e para isto vieram passar os mares, arriscando-se aos perigos dele e na terra más passagens, deixando sua amada pátria, pais, parentes e amigos, enviando-os Deus para o nosso remédio.»

A esta prática responderam os fidalgos que assistiam que falava verdade e que o rei era senhor de sua cabeça e obrasse o que quisesse; e, alcançado o despacho e consentimento dos circunstantes, enquanto Fr. Manuel de Castedo, vigário da povoação, se preparou para administrar o sacramento, se ocupou seu companheiro, o pregador Fr. Manuel de Castelo Branco, em lhe avivar a fé e a detestação e dor de seus pecados. E, estando tudo bem disposto, se administrou o baptismo, em o qual serviu de padrinho o dito Barnabé Lopes, e ficaram os religiosos admirados da grande reverência e piedade com que o rei recebeu o sacramento, porque, estando muito fraco, perguntou se era necessário que se pusesse em pé ou de joelhos. Vendo-se já o que até agora era Bacampolo feito D. Pedro (que este foi o nome com que quis ser apelidado, por obséquio a V. Majestade), o primeiro rei católico desta ilha de Bissau, mostrando uma extraordinária alegria, dava mostras de grande consolação, e, para explicá-la, tanto que recebeu o baptismo, falou (contra o seu costume) esta palavra crioula: «Agora mi esta sabe» (III), que é o mesmo que se dissera, ainda que estivera no maior auge da ventura, levantado em dignidades, abundante de riquezas, cheio de consolações e finalmente de tudo o que no mundo se pode apetecer, nenhuma destas coisas nem todas juntas serão por meu coração de igual valor e gosto como a prenda que agora possuo. E bem o mostrou, pois, acabando de dizer a palavra sobredita, pediu o seu rosário e, lançando a mão a um crucifixo que levava quem o baptizou, disse: «Já agora, Senhor, é tempo de dispores de mim o que melhor for para a minha alma; e assim que haveis de ser meu companheiro nesta cama, para que, como pai, me apliqueis como a filho a medicina que melhor vos parecer me convém. E agora, religiosos padres, é tempo de vos recolherdes para vossa casa, pois vem chegando a manhã de 4 de"Fevereiro, sábado da Páscoa, dia em que recebi o meu bem todo, e dardes descanso a vossas pessoas. E vós, Barnabé Lopes, já que de hoje em diante sois meu espiritual pai, como a filho me lançai a bênção, não vos descuidando de mim, já que não tive a dita de ter um pai espiritual como meu filho teve.»

Despedidos os religiosos, vieram para o seu hospício dando a Deus muitas graças pela incomparável mercê que fez e grande misericórdia que obrou com este venturoso rei; e, depois de tomarem algum descanso, voltaram outra vez a assistir a este novo convertido, porque viam que se lhe ia agravando mais a sua enfermidade, e o consolavam nas suas aflições com a certeza de que aquele Cristo a quem tinha tomado por companheiro lhe escolhia o que era melhor para a sua salvação. E no outro dia, que se contavam 5 de Fevereiro, dia de domingo, depois das ave-marias, deu a sua ditosa alma ao mesmo Cristo.

Divulgou-se a nova de se ter o rei baptizado e do que em sua última vontade ordenara, de que o não sepultassem na sepultura suja de seus antepassados, nem lhe mandassem escravos para o seu serviço, e, se queriam cevar a sua tirania, fosse em um cavalo que lhes deixava e tinha comprado por dois escravos poucos dias antes de morrer. Mas como era contra a vontade de muitos o seu baptismo, também o foi a sua disposição, não querendo entregar o corpo para se lhe dar sepultura eclesiástica, por mais diligências que para isto fizessem os religiosos, para não perderem as suas superstições de correrem as suas chinas com o cadáver e gastarem muitas vacas e bebidas pelo decurso de um ano. Mas, sem embargo disto, lembrando-se da vontade do defunto e temendo algum castigo de Deus, não usaram com este rei o que costumavam com os seus passados, porque somente mataram oito ou nove rapazes e raparigas, costumando quarenta e cinquenta, e ainda não acabaram cinco meses e já têm acabado o seu choro.

Morto o rei, se meteu em sua casa um seu irmão, filho da mesma mãe (porque os reinados em quase toda esta gentilidade se herdam pela fêmea), o qual se chama Tôrô Có (IV), e por um fidalgo a quem pertence a coroação lhe foram postas as insígnias de rei, que vem a ser o barrete vermelho na cabeça, uma tenaz de ferro no ombro e outro instrumento de ferro, como formão de carpinteiro (V), na mão direita, as quais insígnias sempre servem nesta função, porque se prezam os reis de ser ferreiros, e todos os anos pela sua própria mão fazem na safra que também têm a primeira adaba (VI) ou arado para abrir a terra e começar a lavoura.

Vendo um gentio fidalgo que morava no interior da ilha, por nome Izinha (VII), parente do rei defunto, se veio introduzir e fazer uma aldeia grande entre o Reino onde mora o rei presente e a nossa povoação dos cristãos para impedir ao rei a comunicação do porto; e como é supersticioso, mal acondicionado e sumamente amante dos gentios, tem o séquito de muitos e perturba o legítimo rei. E não tenho feito pouco em acabar com eles que não rompam em guerras até o verdadeiro Deus dispor o que há-de ser, e disto dou particular noticia a V. Majestade em um papel que remeto a Roque Monteiro Paim (VIII). De todas estas coisas que tinham sucedido me foram novas no patacho que partiu de Cacheu em Março para a ilha de Santiago, no qual tive uma carta do dito rei Tôrô Có em que me fazia certo das mortes de seu irmão e sobrinho, dizendo mais que queria ser cristão, entregar-me os filhos do defunto, que são muitos, e dar cumprimento a todas as promessas e palavras que se tinham dado a V. Majestade. E vendo eu a grande mudança e alteração que em tão pouco tempo tinha sucedido, me resolvi a embarcar para esta ilha, onde cheguei em nove dias com felicíssima viagem, e aportei nela a 2S de Maio. Fui recebido de ambos os reis com demonstrações de amor e agasalho e ambos me têm buscado por muitas vezes, mas é sem comparação maior o afecto do rei legítimo, que algumas vezes me tem buscado pela uma hora depois da meia-noite, repetindo as sobreditas promessas, e, sobre mandar ao capitão-mor algum alimento para os soldados, mandou um dia destes para o trabalho mais de setenta pessoas.

Tanto que cheguei, o meu primeiro empenho foi que me entregassem os ossos do defunto para lhes dar sepultura eclesiástica; e teve este negócio muitas dificuldades, porque diziam que ainda durava o seu choro, luto, e que abrir a cova de seu rei sem primeiro falecer outro era uma coisa nunca vista nem imaginada e que não havia de estar capaz de se desenterrar, sendo há tão poucos meses sepultado, e finalmente estava distante desta povoação e que, se isto se soubesse, se havia de amotinar o povo. Respondi a tudo o que Deus me inspirou e acabei com o rei legítimo (que o rei intruso desde o princípio o queria entregar, mas nem ele o podia dar, nem eu o queria de sua mão) que me mandasse mostrar o lugar da sepultura, o que fez, depois de muitas persuasões e diligências, a 11 deste mês de Junho, em que, saindo com os religiosos guiados por dois fidalgos, caminhámos mais de uma légua, e dentro do mato, debaixo de umas grandes árvores, achámos o gentílico cemitério. E abrindo a cova, que era alta e redonda, assistidos de luzes e incensos, foram dentro dois religiosos e o mesmo coveiro que o tinha sepultado, o qual, sempre rindo e sumamente gostoso com ser gente, foi em primeiro lugar (depois de me pedir a paga), tirando as alfaias que se tinham sepultado com seu dono: dois caldeirões, um terçado, um dardo, uma partazana, uma azagaia, uma trombeta e um cabaço de dinheiro com cristal e âmbar e umas contas de cristal com uma verónica de ouro e outras coisas mais que ficaram dentro. E, tirando-se para fora o corpo envolto em muitos panos e por cima um de damasco, abrimos tudo para lhe tirar os sinais de gentio nas duas arrecadas de ouro que nas orelhas tinha, dez ou doze manilhas de prata em cada braço e quantidade de corais ao pescoço. Tirado tudo e entregue ao coveiro por recomendação do rei, tornámos a embrulhar o corpo, cujos ossos estavam ainda organizados. Mandei acender velas e cantar um responso e, recolhendo-o em um caixão que para isso levava coberto com um pano de damasco roxo, assistido de luzes, que se não apagou nenhuma, sendo tão grande a distância, o conduzi para a igreja matriz de Nossa Senhora da Candelária desta povoação, e pelo dobrar dos sinos se começou a divulgar este segredo, com gosto dos cristãos e admiração dos gentios. E passados dois dias, em que mandei preparar a igreja do hospício com sua essa e muitas luzes, transferimos o corpo e, cantando-lhe um oficio, lhe disse missa e preguei as exéquias, narrando as virtudes morais que o defunto tinha quando gentio, com que parece obrigara à misericórdia de Deus que lhe desse auxílios eficazes para que recebesse o baptismo e se salvasse. E celebrando também por sua intenção todos os religiosos, lhe mandei dar sepultura na mesma igreja do hospício, como ele tinha pedido, e foi tão ditoso que se viu assistido nestas suas honras do arcediago e um cónego que vão de viagem para a Sé da ilha de São Tomé e de três religiosos agostinhos descalços que vão para a mesma ilha, de quatro sacerdotes seculares e oito religiosos deste hospício; e tanto número de sacerdotes foi coisa nunca vista nestas partes.

Assistiu a estas exéquias de seu irmão o sobredito rei Tôrô, que, vendo disparar a artilharia e os soldados postos em alas e depois os ofícios funerais, ficou pasmado. E finalmente esteve muito atento ao sermão, e, acabado tudo, veio jantar comigo; e por sobremesa lhe tornei a propor as matérias da fé e me deu boas esperanças de se fazer cristão, mas cuido que há-de dilatar o consentimento, pela necessidade que tem dos gentios para a sua conservação; fico trabalhando neste negócio. Deus Nosso Senhor, por sua infinita misericórdia, se compadeça de tantas almas, mas tenho esperança firme da sua redução, pelo grande abalo que lhe causou o baptismo do nosso venturoso defunto, por quem peço a V. Majestade me faça mercê na primeira embarcação que vier por esta ilha mandar-me uma campa que traga por epitáfio: «Aqui jaz D. Pedro, primeiro rei cristão desta ilha de Bissau, que faleceu em 5 de Fevereiro de 696.»

Agora me fico ocupando em repartir os vestidos que V. Majestade e a rainha nossa senhora mandaram para os novamente convertidos, que foi excelente traça para atrair estes gentios, que a bandos os vêm pedir e com desejo deles aplicam muito a aprender as orações.

Para a povoação dos gentios de Bolor mandei o ano passado dois religiosos que já têm baptizado muitos meninos, tão espertos que alguns deles sabem já as orações e ajudar à missa, e, ainda que os padres os castiguem, não fogem da escola, e eles mesmos, em seus fracos ombros, acarretaram água e o mais necessário para se fazer a igreja que se benzeu em Março passado.

Agora mando outros dois religiosos para a ilha de Carache, que é a mais principal das doze ilhas dos pretos Bijagós, porque todos os seus naturais, em um ajuntamento que fizeram, indo lá dois religiosos de tempos passados, resolveram que queriam padres a quem dariam vaca e arroz para ajuda do seu sustento e que lhe entregariam todos os seus filhos para os doutrinarem; e, convertida a dita ilha, tenho por sem dúvida que todas as circunvizinhas se convertem, por serem estes de Carache de maior estimação e exemplo entre todos.

De tudo o que tenho referido pode V. Majestade conhecer a boa disposição em que está esta seara, por se colherem dela muito copiosos frutos, para o que é necessário venham trabalhadores, e sobretudo um bispo caritativo e zeloso, como já em outra ocasião disse a V. Majestade e agora o torno a repetir, porquanto o bispo da ilha de Santiago não pode, ainda que queira, cultivar esta nova vinha. E considerando eu a grande necessidade que têm estas pobres almas de quem lhes reparta o pão da doutrina cristã, peço a V. Majestade, com todo o rendimento, me faça mercê aceitar a saída do bispo de Santiago, para que, vindo, não bispo, mas missionário, para estas partes, nelas passe o que me resta da vida.

Finalmente, na igreja matriz desta ilha de Bissau se há-de fazer precisamente um baluarte da fortaleza que V. Majestade manda edificar, conforme diz o capitão engenheiro, e trato logo de escolher sítio e começar a igreja nova. Poderei remediar as paredes e algumas madeiras; porém, nada mais, pelo que peço a V. Majestade, para honra e serviço da senhora da casa, me mande dar seis pipas de cal para rebocar as paredes, um barril de pregos sorteados, oito dúzias de tabuado serrado e quatro dúzias de solho e seis milheiros de telha; e há-de vir tudo na primeira embarcação, que quero ter o gosto de deixar acabada esta igreja antes que me recolha para a ilha de Santiago. O mais de que devo dar conta, o faço com cartas particulares, deixando muitas miudezas, porque me não dá lugar a brevidade da embarcação e as muitas ocupações em que me vejo. Guarde Nosso Senhor V. Majestade e o tenha em sua graça como sempre lhe rogo.

llha de Bissau, hoje, 15 de Junho de 1696.
Frei Vitoriano Portuense, bispo de Santiago.

NOTAS

I - «Jagra» é o nome de uma das sete classes da sociedade papel, a dos fidalgos, de onde saem normalmente os reis. De notar que aqui se diz que o jagra falecido irmão de Bacampolo-Có era herdeiro do reino, o que leva a supor que o morgado Manuel de Portugal não o seria, apesar do que aquele escreveu na sua carta mais longa de 25 de Abril de 1694 a D. Pedro II.

II - Na relação da primeira viagem, no n.º 17, também o bispo refere este cabo, sem lhe dizer o nome. Aparece com frequência nos documentos da época, como pessoa gozando de grande prestígio.

III - Trata-se de frase bastante característica do crioulo, que assim se confirma já então ser corrente.

IV - Note-se que Tôrô tem o mesmo apelido «Có» que Bacampolo, apelido esse que já seria então, como sucede hoje, o do pai, visto que ambos seriam da «geração» dos «jagras», que tem o exclusivo da "reinança" e que é determinada por via matrilinear; F. Rogado Quintino informa-nos que a tradição oral dos Papéis diz que originariamente os apelidos eram os da geração da mãe, mas que a partir de certa altura passaram a ser os do pai. «Có» significa «sapo», o animal totémico da «geração» «Intsó» (pl. «Batsó»). Os «jagras» ou fidalgos são da geração «Inxaxo» (pl. «Baxaxo») e têm como animal totémico a onça («Nanque»); o seu apelido geral é "Ié"», sendo o de «Nanque» reservado aos régulos e seus filhos (F. Rogado Quintino). É de notar que a maior parte dos documentos que se referem ao rival de Tôrô Có lhe chamam Zinha ou Inzinha, enquanto noutros vem como Incinhate; isto sugere que a particula final (que nas cartas publicadas no apêndice com os nos. XVI e XVII vem separada) será o apelido totémico «Té» (lebre) da «geração» "Intsafinté" (pl. "Bassafinté"), que seria a de seu pai.

F. ROGADO QUINTINO, «Os povos da Guiné», in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, XXIV, 96, Out. 1969, pp. 876-877, aventa que o termo Biçaos (aplicado em textos antigos aos habitantes da ilha, e que teria dado o nome a esta) poderá provir de Bissau (pl. de lntchassu), forma mais exacta da designação do clã dos Baxaxo.

Nas suas descrições de 1669 (cap. III) e 1684 (cap. v), LEMOS COELHO indica que, além do Rei Grande, havia na ilha mais 6 reis, de Bium, Tor, Bujamata, Cachete, Safim e Antula (hoje correntemente designados de Biombo, Tor, Bijemita, Quecete, Safim e Antula). Um século depois, Fr. Francisco de Santiago (v. ANTONIO J. DIAS, ob. cit., p. 223) acrescenta a estes seis um sétimo, o de Comerá (actual Comura).

Hoje hâ mais os «chãos» de Bissalanca, Jal, Bor, Bandim e Intim, e seria num deles ou no seu conjunto que mandaria directamente o «Rei Grande». D. Fr. Vitoriano Portuense, na relação da viagem de 1694, diz que o «Reino» deste ficava a dois tiros de mosquete da povoação dos cristãos, o que o localizaria em Bandim ou, mais provavelmente, em Intim, se atendermos ao que dizem fontes posteriores. Assim, F. TRAVASSOS VALDEZ, Africa Occidental, Lisboa, 1864, p. 354, indica mais três nomes de reinos - Prabis, Bandim e Intem -, dizendo que o régulo «principal ou o mais poderoso é porém o de Intem, que de mais a mais pretende descender dos antigos reis da ilha, quando esta formava um só reino, sendo então os outros régulos meramente governadores seus subalternos».

Alexandre de Almeida considera que o «Rei Grande» seria o do «chão» de Bissalanca, topónimo que não é mencionado naquelas fontes antigas, o que poderia inculcar que o «chão» daquele abrangeria em conjunto os actuais regulados de Bissalanca, Jal, Bor, Intim e Bandim e depois se teria fraccionado. Supomos que uma pesquisa demorada das tradições antigas talvez permita esclarecer este ponto, e agradecemos as diligências que nesse sentido fez o comandante Freitas Branco, embora pouco pudesse ter averiguado além de certa relação especial entre o régulo de Intim e o «Reino» de Bissalanca. Igualmente agradecemos as interessantes informações de Alexandre de Almeida, nomeadamente as relativas aos pequenos regulados de Ondote (a que pertencia o ilhéu do Rei) e de Buno ou Breno.

V - Este instrumento «como formão de carpinteiro» traz ao espírito os «sónó machos» que recolhemos no «chão» Mandinga e Beafada (v. A. TEIXEIRA DA MOTA, «Descoberta de bronzes antigos na Guiné», in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, xv, n. 059, Jul. 1960, pp. 525-532) e que terminam superiormente em forma de raspadeira ou formão. Pelo que diz o bispo, os reis de Bissau prezavam-se de ser ferreiros, mas a tradição oral aponta que essa arte seria oriunda dos Felupes. Poderâ aquela analogia traduzir uma influência mandinga, dadas as apertadas relações que então havia entre Bissau e o Cabo, patentes em vârios documentos desta época?

VI - J. J. LOPES DE LIMA, ob. cit., parte I, p. 24, descreve a adaba utilizada pelos Felupes na orizicultura, e o termo provém do mandinga «daba», segundo W. A. A. WILSON, The Creoulo of Guiné, Joanesburgo, 1962, p. 47. Hoje chama-se-lhe também correntemente na Guiné «arado balanta», e este texto de Fr. Vitoriano Portuense parece ser o mais antigo que regista a forma «daba». Note-se o papel do rei em cerimónia ligada às actividades agricolas, o que continua a traduzir-se noutras manifestações actuais do grupo Papel-Manjaco-Brame.

Ao «arado balanta» - por excelência o instrumento de lavoura dos povos litorálicos orizicultores em que se incluem os Papéis - se deve referir D. Fr. Vitoriano Portuense, chamando-lhe «daua», na relação da sua segunda viagem à Guiné, na qual igualmente menciona a tenaz como símbolo da realeza do rei de Bissau e põe em destaque o seu atributo de ferreiro.

VII - «Izinha» ou «Izinhá» lhe chama o bispo, «Inssinha» e «Azinhate» o capitão-mor José Pinheiro, «Inzinhá» vem denominado no parecer do Conselho Ultramarino de 5 de Novembro de 1696 (tudo em documentos de que se trata adiante) - ficou na história mais geralmente com o nome de «Incinhate», designação que vem em cartas que enviou a D. Pedro 11. Vê-se que SOUSA MONTEIRO (ob. cit. na nota 1 da parte introdutória) considerou, erradamente, distintos «Azinha» e «Incinhate», e chamou «Torre» a «Tôrô CÓ». Que documentos terá consultado?

VIII - Trata-se do «Manifesto e palavra», datado de 29 de Maio de 1696, que o bispo remeteu a Roque Monteiro Paim com carta de I5 de Junho do mesmo ano (transcritos no apêndice documental, nos. VII e VIII).



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