sábado, julho 16, 2005

Baptismo em Lisboa de D. Manuel de Portugal, filho do rei de Bissau (1/2)

A PRIMEIRA VIAGEM DO BISPO D. FR. VITORIANO PORTUENSE À GUINÉ E O BAPTISMO EM LISBOA DE D. MANUEL DE PORTUGAL, FILHO DO REI DE BISSAU, SEGUNDO O OPÚSCULO DE 1695
por António Rodrigues da Costa - 15 de Janeiro de 1695

in "As Viagens do Bispo D Frei Vitoriano Portuense à Guiné"
por Avelino Teixeira da Mota
Biblioteca da Expansão Portuguesa
Publicações Alfa, Lisboa, 1989


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Rosto do folheto de António Rodrigues da Costa editado em 1695

CONVERSÃO DE EL-REI DE BISSAU / CONSEGUIDA / PELO ILUSTRíSSIMO SENHOR D. FR. / Vitoriano Portuense, bispo de Cabo Verde do Conselho de / Sua Majestade, / E / BAPTISMO DO PRíNCIPE D. MANUEL / DE PORTUGAL / FILHO PRIMOGÉNITO DO MESMO REI/CELEBRADO NA CAPELA REAL DESTA / corte sendo padrinho / EL-REI NOSSO SENHOR / QUE DEUS GUARDE / OFERECIDA / AO MUITO ILUSTRE SENHOR ROQUE / Monteiro Paim, do Con¬selho de S. Majestade, seu secreta / rio, deputado da Junta das Missões, senhor de Vila Cais, / e dos Reguengos da Maia e Refóios e comenda / dor de Campanhães na Ordem de Cristo, etc. / EM LISBOA / à custa de ANTÔNIO MANESCAL, livreiro do Infantado, ano de 1695 / Com todas as licenças necessárias.

Ao muito ilustre senhor Roque Monteiro Paim, do Conselho de Sua Majestade, seu secretário, deputado da Junta das Missões, senhor de Vila Cais e dos reguengos da Maia e Rejóios e comendador de Campanhães na Ordem de Cristo.

Senhor

A conversão de el-rei de Bissau e o baptismo do príncipe D. Manuel de Portugal, seu filho, são de tanta glória para a igreja católica e de tanto crédito para este reino que justamente se anima a minha confiança a pôr nas mãos de V. M. a relação deste sucesso. E com maior razão vendo que grande parte desta felicidade se deve àquele incomparável zelo e desvelo com que V. M. procura a melhor direcção e aumento das missões e ao particular cuidado com que atende a esta costa de Cabo Verde, tomando sobre seus ombros, com desvelada aplicação e trabalho infatigável, todo o peso da Junta das Missões. E, sendo os negócios deste tribunal os do maior agrado de el-rei nosso senhor e aqueles que entre os mais graves cuidados da monarquia ocupam sempre o primeiro lugar na sua soberana atenção, prudentemente fia V. M. a sua expedição da actividade e zelo de um tão grande ministro, que não só acredita as suas disposições com os acertos, mas com a felicidade, como tem mostrado a experiência, assim com o que referimos neste papel, como com o muito que pudera relatar em mais difusas narrações que terão lugar e tempo, que este só é agora para pedir a V. M. queira nesta relação atender somente à matéria que refere, que não pode deixar de ser grata ao seu zelo e ao ânimo de quem a escreve, que é só dirigido a que não fique de todo sepultado nas sombras do esquecimento um sucesso que é tão benemérito das luzes da memória. Deus guarde a pessoa de V. M. Lisboa, 15 de Janeiro de 1695. Criado de V. M., António Rodrigues da Costa.


o católico e ardente zelo com que os senhores reis deste reino procuraram sempre em as suas gloriosas conquistas a extensão da sagrada lei evangélica tem tão ilustres testemunhos em África, Ásia e América que não necessita esta verdade de outro documento para a sua evidência mais que retroceder com a apreensão dois séculos atrás e considerar estas três grandes porções do mundo no estado em que então se achavam, e voltando logo a esta idade, e acareando-as a elas com elas mesmas, ver que diferem tanto de si próprias que não é possível conhecê-las mais que pela fé dos escritores, cujo crédito, a não ser qualificado com a tradição constante das nações, justamente vacilara nos prudentes escrúpulos da incredulidade. Porque estando todas elas naqueles séculos submergidas em um universal dilúvio da idolatria e maometismo, se vêem hoje em muita parte livres destas mortais inundações e onde então apenas se divisavam umas poucas plantas da fé, que pela falta e incúria dos agricultores se haviam perdido e degenerado, se mostram ao presente com grande consolação da piedade cristã dilatadas e férteis searas e deliciosos jardins de que a igreja católica colhe fragrantes flores e copiosos frutos. E nem a inveja mais iníquia, nem a emulação mais animosa, podem negar que os senhores reis deste reino são os principais credores deste grande beneficio da cristandade, como publica o pregão universal dos historiadores e a Santa Sé Apostólica reconheceu muitas vezes em repetidos actos e bulas pontificias.

Mas entre todos os nossos católicos e ínclitos príncipes faz mui superiores vantagens, e fará sempre em toda a posteridade, o zelo de el-rei nosso senhor e aquele ansioso desvelo com que atende não só a conservar as missões antigas instituídas por seus gloriosos predecessores, mas ainda com despesas imensas do seu património real, aumentá-las com grande número de operários e criação de novos bispados, dando a uns e outros largos viáticos e embarcações para o seu transporte e sustentando-os a todos com pensões anuais nas missões em que residem, despendendo não somente tudo o que dão aquelas conquistas em beneficio da Igreja, mas fazendo também contribuir as rendas reais do seu reino com grossas quantias, principalmente para as missões da Ásia, que no tempo presente, suposta a grande diminuição do comércio daquele estado, são o motivo mais forçoso que pode ter o católico zelo de S. Majestade para que tanto à custa da sua Real Fazenda e das forças deste reino sustente uma conquista, se antes gloriosa e opulenta, hoje condenada por tantas razões políticas e útil somente para a introdução dos operários apostólicos.

Este tão pio zelo de el-rei nosso senhor gratifica Deus tanto à S. Majestade que, ao mesmo tempo em que toda a cristandade se acha envolta em uma sanguinolenta e funesta guerra, vê S. Majestade gozar há tantos anos da tranquilidade da paz a uns vassalos de que não só é rei e senhor, mas também pai por sua incomparável clemência e benignidade. E quando as maiores monarquias da Europa, por falta de sucessores, se vêem expostas aos perigos que nos reinos sucessivos costuma causar este infausto acidente, afiança Deus a S. Majestade a sua soberana sucessão na multiplicidade de sucessores da mais régia e excelsa índole. E como ainda naturalmente a maior satisfação do ânimo é ver conseguido o fim das acções que para ele se dispuseram como meios,não quis a Providência divina que esta faltasse ao zelo de S. Majestade, mostrando-lhe também logradas as suas católicas disposições, que na América vê aumentadas em grande número as missões e aldeias dos gentios convertidos da idolatria ao conhecimento do verdadeiro Deus e reduzidos da bárbara fereza dos seus costumes à vida política; na Ásia dilatadas searas fertilizadas com o sangue de gloriosos mártires e em África tanta disposição para colher dela copiosíssimos frutos que se espera ver brevemente reduzidos reinos inteiros, como devemos entender da inclinação que el-rei de Bissau mostra à lei evangélica e do grande fervor e espírito com que o príncipe, seu filho primogénito, a abraçou, cuja conversão por estas razões ouviu S. Majestade com tanto alvoroço e festejou com tanta alegria e aplauso que pedia esta matéria pena mais altíloqua para dignamente referir esta acção digníssima do católico zelo e real generosidade de S. Majestade, mas bastará referi-la fielmente, que as acções por si ilustres não necessitam de outro adorno mais que da sua verdadeira exposição, porque elas por si mesmas se conciliam o aplauso e admiração de todos.

É Bissau uma das muitas ilhas que há junto ao continente da costa de Cabo Verde, sem embargo que na sua extensão e muitas outras circunstâncias se avantaja a todas as mais.

Está situada na altura de 110 da banda do norte, terá de circunferência 28 léguas, com um porto ao sul muito capaz e seguro, o qual tem à entrada um pequeno ilhéu que, recebendo o primeiro ímpeto das águas, ajuda à tranquilidade e segurança do surgidoro, dos quais lhe não faltam outros em diversas distâncias que dão fácil acesso às embarcações. O clima é salutífero, com grande excesso ao de Cacheu e de toda aquela costa, assim pela pureza dos ares como pela frescura e bondade das águas. O número dos seus habitadores se estima em vinte mil famílias, que comummente são de natural mais dócil e brando que os outros da sua cor, que é negra, com o cabelo torcido como todos os mais daquela costa da Etiópia ocidental a que chamamos Guiné, e aos Portugueses têm uma particular inclinação, preferindo-os a todas as outras nações da Europa no respeito e no afecto, de tal sorte que, suposto que estas excedem a portuguesa na alvura natural do corpo, só aos Portugueses denominam com o apelido de Brancos, ou por ser a primeira nação em que notaram esta cor para eles tão estranha no corpo humano, ou porque com esta antonomásia mostram reconhecer os Portugueses pelos primogénitos da sua veneração.

A sua crença ou religião é tão sucinta que só se cifra em crer que há um Deus superior a todas as criaturas e essências; não adoram ídolos, nem os têm. Mas, suposto que estes princípios são tão próximos à verdade da religião católica, logo descompõem este acerto em não crerem a imortalidade da alma racional prémio ou castigo depois da morte, motivos eficacíssimos para a justa moderação das acções humanas e ainda sem a luz da fé para a conservação da vida civil, ao que acresce que, supondo que há espíritos diabólicos e que estes lhes podem revelar o futuro e prosperar os seus desejos, lhes fazem uns sacrifícios a que chamam «chinas», sacrificando neles algumas aves, o que lhes serve de auspícios para augurarem os sucessos do que empreendem e procurarem o efeito do que desejam.

Há entre eles, como entre todas as nações desta costa, uns estrangeiros também etíopes a que chamam Mandingas, de uma nação do interior da África, os quais, feitos missionários do Alcorão e ministros do Inferno, procuram transfundir o veneno da sua diabólica doutrina na singeleza dos naturais, e, suposto que a poucos persuadem à total observância do maometismo, a muitos obrigam ao preceito da circuncisão, que é comum aos Maometanos e aos Hebreus. Porém, entre todos é geral a propensão para a religião católica, não somente consentindo que os filhos e sobrinhos e todos aqueles em quem têm poder a recebam, mas ainda muitas vezes espontaneamente os entregam aos missionários para os baptizarem, e festejam o dia daquela celebridade, mostrando nesta uma irracional barbaridade, porque, procurando para os outros uma fortuna que reputam por tão venturosa, pois a celebram, ficam sem ela, sendo-lhe ao menos tão fácil consegui-la para si como lhe é pronto alcançá-la para os outros, podendo aprender das mesmas feras e dos irracionais com que tratam, não deverem preferir o cómodo alheio à utilidade própria.

Domina esta ilha com o título de rei um príncipe chamado Bacampolo-Có, gentio de crença comum de seus vassalos, mas com tal inclinação à religião católica e tal respeito às coisas sagradas que o não parece quando ou se pratica daquela ou se trata destas, ouvindo sempre os missionários com grande atenção nas matérias dos mistérios da lei de Cristo Senhor Nosso, e mostra reconhecer neles um poder mais que humano e uma autoridade quase divina.

Para esta sua persuasão contribui muito o exemplar procedimento e virtude dos religiosos capuchos da Província da Soledade, cujo zelo tem tomado por sua conta toda esta missão de Guiné com tanto ardor que podem servir de exemplo a todos os religiosos missionários, porque, não reparando na intemperança do clima e aspereza da terra, discomodidades da vivenda e habitação entre gente tão falta da polícia da Europa e de vida e trato tão estranhos, movidos só de um verdadeiro zelo de dar à Igreja militante novos soldados, sem outra alguma esperança humana, discorrem alegres e intrépidos por aqueles rios e sertões da Etiópia só com um pobre hábito e um breviário e missal a municioná-los com o pão dos anjos e discipliná-los nos mistérios da nossa sagrada religião e nos exercícios das virtudes católicas. E, suposto que a continuação de um tão molesto trabalho como este, junto com a inclemência dos ares e temperamento da terra, costuma tirar a vida em poucos anos a estes apostólicos varões no meio das suas evangélicas fadigas (porque quer Deus antecipar-lhes com a glória o prémio dos seus desvelos, costumando morrer cada ano sete ou oito), logo esta Província, com incrivel prontidão, substitui aquela falta com maior número, e todos com igual constância vão continuar o mesmo ministério apostólico, havendo muitos que se acham mortos naqueles incultos bosques abraçados com os crucifixos, como sucedeu ao P. e Fr. Mateus de Salreu, varão de espírito verdadeiramente apostólico, que, depois de haver feito grande fruto nesta vinha do Senhor, foi achado em o sertão encostado ao tronco de uma árvore e reclinado sobre uma imagem de Cristo crucificado. E dele se relata que, várias vezes levado do espírito evangélico quando aqueles gentios com maior concurso celebravam o sacriflcio que fica referido, ele intrepidamente lhes lançava por terra o altar e todo o aparato dele com tal admiração e respeito dos mesmos gentios que não só o não ofendiam, mas nem ainda se atreviam a renová-lo na sua presença.

Esta constância, pois, e este zelo com que aqueles bárbaros vêem que estes religiosos solicitam o bem alheio sem alguma conveniência ou interesse do século é o que mais lhes move os ânimos, que sempre os exemplos e as obras foram mais eficazes para persuadir que as palavras e os discursos, por mais eloquentes que sejam, e assim formam da sua virtude tal conceito que se valem deles nos seus apertos e necessidades mais urgentes para alcançarem do Céu pela sua intercessão o remédio que pretendem. E se viu bem quando este mesmo rei de Bissau, Bacampolo-Có, sobrevindo-lhe um destes anos atrás uma inundação de insectos em toda a ilha que lhe destruía as searas, mandou pedir a Fr. José do Beco (que então assistia no hospício que ali têm estes religiosos), quisesse com o poder que nele reconhecia, superior às forças humanas, livrar aquela terra de tão iminente e grave castigo. A estes rogos respondeu o religioso que só o verdadeiro Deus, cuja fé e culto lhe pregava como omnipotente, autor da natureza e senhor das criaturas, tinha poder para obrar o que ele pretendia, que o que ele só podia fazer era, unindo-se com seus irmãos aos cristãos da terra, que pelo baptismo ficaram filhos adoptivos de Deus, formar um clamor mais vivo e eficaz para com ele pedir ao mesmo Deus, Pai das Misericórdias e dispensador de todos os bens, livrasse também estes gentios daquela impendente calamidade. E, expondo logo o diviníssimo Sacramento com o concurso dos portugueses que ali se achavam e dos cristãos da terra, que passam de seiscentos, fez uma devota procissão e aquelas preces que para este caso ensina a Igreja Romana. Uma e outra coisa parece aplacou a ira divina, de tal sorte que em breves dias se viram as searas livres daquele dano e a seu tempo se colheram sazonados e copiosos frutos. E, suposto que este sucesso e outros semelhantes não acabaram de ilustrar de todo a cegueira daquele rei, de tal modo tem disposto aquele coração, que se espera que muito brevemente virá a reconhecer a luz da verdade, sabendo-se decerto que ainda antes deste último sucesso que acabamos de referir disse ele a alguns daqueles religiosos missionários que ele havia de ser o último rei gentio de Bissau e o primeiro rei cristão.

Esta era a disposição em que se achava o ânimo deste príncipe quando o Ilustríssimo bispo de Cabo Verde, D. Fr. Vitoriano Portuense, verdadeiro aluno da mesma Província da Soledade e bem conhecido neste reino pelas suas grandes letras e virtudes, movido de seu zelo, se dispôs a ir visitar aquelas tão derramadas cristandades dos rios de Guiné e ilhas a eles adjacentes. E, não obstante não haver memória de que os bispos seus antecessores fizessem esta visita pelas suas pessoas e não se oferecer naquela ocasião embarcação segura e cómoda para o transportar, tudo venceu a sua fervorosa constância, e assim, aos 7 (1) de Fevereiro do ano presente de 694, se embarcou na ilha de Santiago, metrópole das de Cabo Verde, em um pequeno patacho, acompanhado somente de seu arcediago, que servia de escrivão da visita, do meirinho-geral, um pajem e um menino do coro. E, sendo a viagem dali à praça de Cacheu de seis até sete dias, se dilatou esta por espaço de trinta, por impericia do piloto, que foi dar com o navio em uns baixos junto às ilhas Bijagós e saindo destes em outros, livrando de ambos com grande trabalho e perigo, porque queria Deus por mão deste apóstolo varão curar as enfermidades espirituais que mortalmente afligiam aquelas ovelhas tão separadas dos seus pastores e granjear outras novas para o grémio católico.

Chegado o bispo a Cacheu por meio destes perigos e trabalhos, e entendendo logo não ser conveniente dar princípio à visita por aquela praça desassossegada naquela ocasião com a chegada das caravelas deste reino, se deteve ali poucos dias, e em 20 (2) de Março partiu para a ilha de Bissau, onde chegou; e em 27, havendo evadido o perigo de ser assaltado pelos Balantas bravos, em cuja costa encalhou o navio em um banco de areia que ficava tão perto da terra daqueles bárbaros que se deixava ouvir um horrível estrépito de chorosas vozes com que costumam estes gentios todos os dias, antes de sair o Sol e depois de se pôr, prantear os seus defuntos de maior nome e autoridade entre eles por espaço de um ano, oferecendo-lhes sobre as sepulturas, como por exéquias e sacrifícios, os seus lamentos envoltos em tão dissonante música que bastam a escandalizar os ouvidos das brutas feras daqueles bosques e pô-los em fugida, quanto mais aos irracionais. E esta ocupação devia-os divertir para não verem a embarcação encalhada e lhe não darem a assaltada que costumam dar a todas aquelas a que sucede semelhante infortúnio.

Logo que o bispo chegou a Bissau, o mandou o rei visitar pelo seu alcaide, magistrado que com o nome tomaram dos Arábios, com quem têm alguma comunicação pela nação dos Mandingas, e este, entre muitas demonstrações de grande urbanidade, ofereceu da parte do mesmo rei um refresco de frutas da terra e vinhos de palma. O seguinte dia veio o próprio rei visitar o bispo. Vinha diante grande número de povo, assim para fazerem obséquio ao rei como para satisfazerem a curiosidade própria, desejando ver o grande padre dos cristãos, que esta é a frase com que a sua rudeza, unida ao seu respeito, significa o sagrado da dignidade episcopal. Seguiam-se os cavaleiros e cortesãos, que no traje e compostura se distinguiam do povo, e em último lugar el-rei, que é homem de boa estatura, bem disposto e proporcionado; mostra ter quarenta e oito anos de idade e um aspecto tão grave e senhoril que facilmente se pode conhecer por rei entre os vassalos, circunstância que, sendo entre todas as nações, ainda as mais políticas, motivo muito eficaz para conciliar o respeito, o é muito mais naquelas em que o entendimento, por falta de cultura, tem menos operação e só imperam os sentidos materiais, que, sem penetrar o interior, se deixam arrebatar das aparências externas. Vestia pano fino com um casacão de púrpura, cabeleira e chapéu pardo; na mão direita trazia uma pequena azagaia por insígnia da soberania, por ser este o estilo daquelas nações, como entre nós a coroa e o ceptro. Depois de feitas as primeiras continências e cerimónias de cortesia, cada um ao seu modo, passou o rei a falar ao bispo com acordo mais que de bárbaro, e, suposto que entende a lingua portuguesa muito bem e a pudera falar no dialecto com que ali se usa, assim esta prática como todas as mais foram por meio de intérprete por respeito e acordo da regalia de que estes gentios são muito desvanecidos. Encaminhou o bispo o rei para a igreja, em que se disse missa, e depois conferiu o sacramento da Confirmação a muitos cristãos da terra, e a tudo assistiu o rei com curiosidade e satisfação. Acabado este acto, convidou o bispo o rei para que jantasse com ele no hospício que ali há dos referidos religiosos da Soledade, e na mesa se houve o rei com tanta modéstia e temperamento que era necessário que o bispo o rogasse para que fizesse um brinde. Nesta primeira prática, procurou este prelado tentear-lhe somente o ânimo e a inclinação que tinha para a religião católica, porque reservava para outra mais oportu¬na o propor-lhe esta doutrina com toda a eficácia, e assim, sem entrar por então no empenho de lha pregar, lhe disse, depois de lhe louvar a moderação e agrado com que assistira à celebração daqueles sacramentos, que ouvira dizer que ele já há mais de sete anos dissera a alguns missionários que havia de ser o último rei gentio de Bissau e o primeiro cristão, que desejava saber se aquela notícia que lhe deram era verdadeira, ao que o rei, sorrindo-se, respondeu que assim era. Sinal evidente de que a misericórdia divina há muito tempo combate com inspirações o coração deste príncipe para que largue o gentilismo, e ele não acaba de romper o véu da sua cegueira.

1. Na relação de 25 de Julho de 1694, o bispo diz que partiu a 14 de Fevereiro.
2. Na relação do bispo diz-se que a partida foi a 24.



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