quinta-feira, julho 28, 2005

Algumas dúvidas sobre a primitiva cristandade de Bissau

por Avelino Teixeira da Mota

in "As viagens do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné"
Biblioteca da Expansão Portuguesa
Publicações Alfa, S.A., Lisboa, 1989


Em 1844, o secretário do Governo de Cabo Verde, José Maria de Sousa Monteiro, decidiu viajar até Bissau, para melhor se inteirar dos problemas da Guiné. Como fruto dessa viagem, saíram em O Panorama (1853, 1855, 1856) os seus «Estudos sobre a Guiné de Cabo Verde», repletos de informações de interesse, e que, começando por serem uma narrativa de viagem, terminaram, de maneira um tanto estranha, sob a forma de uma obra de ficção baseada nas realidades étnicas e sociais da Guiné. Divididos em trechos de uma a três páginas por quarenta e dois números daquele périódico, tais «Estudos» têm passado despercebidos dos modernos estudiosos da Guiné, embora não escapassem ao arguto Edmundo Correia Lopes.

Quis Sousa Monteiro conhecer das gentes de Bissau o que sabiam sobre o estabelecimento da cristandade na ilha.

Então cada um foi expondo o que tinha ouvido aos mais velhos, que também o tinham ouvido a outros, que de mais antigos o haviam recebido. Era, portanto, uma história tradicional a que eu estava ouvindo com todos os seus caracteres, e com todas as suas lacunas e imperfeições.

Segundo essa tradição, os Franciscanos teriam chegado a Bissau nos fins do século XVI, quando já lá havia uma feitoria comerciando com Geba. Ter-se-iam convertido muitos papéis e teria sido erguida uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Mortos os primeiros missionários, registar-se-iam as visitas de outros, «e numa destas visitas se converteu à religião cristã o rei dos Bissaus, que se baptizou, e com ele um grande número de pessoas, motivo pelo qual se fizeram muitas festas e regozijos», vindo um «capitão mandante» para governar a população, o que seria por 1598.

Ouvida esta narração, perguntei eu se este rei era um chamado Bacampolo-Có, de que tratava um livro que fui buscar, pois o tinha trazido comigo pelas informações que dava de Guiné, as quais eu queria verificar. Não me souberam res¬ponder; parecia-lhes porém que não, porque esse nome não era papel.

E Sousa Monteiro conclui que tal conversão não teria tido lugar na época em que o autor da obra a colocava, 1696, até porque a ilha de Bissau seria então governada por três reis, que se chamavam Incinhate, Azinha e Torre. Reportando-se ao mesmo livro, diz que nele se indica que o filho primogénito de Bacampolo-Có fora a Lisboa, sendo baptizado na capela real, e que o bispo D. Fr. Vitoriano Portuense mandara missionários para Bissau, os quais teriam erguido a igreja matriz, e que teriam ido quinze frades de Lisboa.

Todos se sorriram ouvindo esta leitura: eis ai como se escreve em Portugal sobre as nossas coisas, disseram eles.

Embrenha-se seguidamente Sousa Monteiro na discussão destes factos, na data da construção do convento de Bissau e nas circunstâncias da edificação da fortaleza que por então se verificara. Mostra-se conhecedor de documentação da época - incluindo cartas de José Pinheiro e de Santos Vidigal Castanho, capitães-mores de Bissau e Cacheu, respectivamente (tê-la-ia visto na ilha de Santiago, ou anteriormente em Lisboa?) - e chega a conclusões em que em parte não pode ser seguido, em face das fontes hoje divulgadas. Viu, porém, com argúcia que a ideia da construção da fortaleza estava relacionada com a acção missionária. O interesse do culto secretário do Governo pela história revela-se ainda na circunstância, que refere, de ter feito publicar no Boletim Oficial de Cabo Verde (1845) uma carta do rei Incinhate, existente nos registos da secretaria (I); dela nos ocuparemos adiante.

Não é difícil concluir que o livro referido por Sousa Monteiro é a Corografia Cabo- Verdeana ou Descripção Geographico-Histori¬ca da Provincia das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, de José Conrado Carlos de Chelmicki e Francisco Adolfo de Varnhagen, em cujo tomo II (Lisboa, 1841), a pp. 168-170 e 181-182, com efeito, o futuro rei da historiografía brasileira afirma ter sido D. Fr. Vitoriano Portuense quem fundou o convento de Bissau e que os missionários enviados por si ergueram a igreja matriz. Diz ter sido esse bispo quem converteu Bacampolo-Có e que o seu filho primogénito foi baptizado em Lisboa, regressando a Bissau com quinze frades, em 1696, ano em que D. Pedro II mandou construir a fortaleza e enviou um
governador. Aponta ainda Varnhagen que o bispo escreveu uma relação da missão que fez a Bissau, e que dela extraiu António Rodrigues da Costa grande parte do que vem no folheto que publicou em Lisboa em 1695 sobre o assunto.

Pela mesma altura, também Lopes de Lima escrevia que aquele bispo «foi a Bissau, onde fundou o hospício e converteu o rei Bacampolo-Có e seu filho e muita mais gente» (II).

Ao benemérito Sena Barcelos se deve um progresso notável no conhecimento da questão, pois na sua obra maior transcreve, resume ou comenta os documentos do Conselho Ultramarino que lhe respeitam. Ignora, no entanto, o texto do opúsculo de 1695 que referira Varnhagen, e diz que a D. Fr. Vitoriano Portuense «se deveu o baptismo de Bacampolo-Có e o de Incinhate, realizado o deste em 15 de Junho de 1696, com o nome de Pedro» (III). João Barreto, cujo livro é um inteligente aproveitamento do trabalho documental de Sena Barcelos, afirma o mesmo (IV).

Coube a outro notável historiador da Guiné, o Pe. António Joaquim Dias Dinis, publicar grande parte da relação que o próprio bispo D. Fr. Vitoriano Portuense escreveu sobre a sua primeira viagem à Guiné, datada de 25 de Julho de 1694, o que veio confirmar que o opúsculo de 1695 de António Rodrigues da Costa se baseia largamente nela (V).

Publicámos este opúsculo na integra há uns anos, com breve comentário, em que cometemos o erro, na esteira de Sena Barcelos, de afmnar que o bispo converteu em 1696 o régulo Incinhate. Desconhecíamos então, como afirmámos, o que se passara com o filho primogénito de Bacampolo-Có, Manuel de Portugal, após regressar a Bissau (VI).

O Pe. António Lourenço Farinha, que parece ter conhecido o referido opúsculo ou algum documento afim, diz ter visto em manuscrito de data posterior que Bacampolo-Có foi baptizado por Fr. Francisco da Guarda (VII).

Mais recentemente, o Pe. Henrique Pinto Rema, na esteira de autores citados, escreveu que Bacampolo-Có foi convertido à religião católica por ocasião da primeira visita pastoral a Bissau de D. Fr. Vitoriano Portuense, e Incinhate foi baptizado em 15 de Junho de 1696, no decurso da segunda visita pastoral do mesmo prelado (VIII).

Tendo adquirido em Londres, há uma dúzia de anos, um exemplar do raro opúsculo de 1695, demo-nos ao trabalho de transcrever na íntegra a relação da primeira viagem de D. Fr. Vitoriano Portuense à Guiné, com vista à publicação conjunta. Retardámos o intento, na vaga esperança de encontrarmos documentação que esclarecesse alguns factos obscuros, nomeadamente o ocorrido com o príncipe Manuel de Portugal após o seu regresso à Guiné. Tal esperança realizou-se, ao depararmos, há anos, na Biblioteca da Ajuda, com uma longa carta de D. Fr. Vitoriano Portuense dirigida a D. Pedro II, escrita em Bissau a 15 de Junho de 1696.

Sabemos, agora, quem na realidade baptizou Bacampolo-Có; não foi o bispo -, embora a sua acção inteligente tivesse contribuído para a conversão -, nem Fr. Francisco da Guarda. Sabemos qual foi o triste destino de Manuel de Portugal pouco depois de voltar ao seio da sua gente. Temos o relato da acção intemerata do bispo ao deslocar-se de Santiago à Guiné para ir desenterrar do túmulo pagão do Enterramento, a alguns quilómetros da Praça, os restos mortais de D. Pedro (ex-Bacampolo-Có), desataviá-los ali mesmo dos numerosos adereços gentios que os revestiam e transportá-los pelo «chão» papel perante os olhares atónitos dos nativos, para lhes dar solene sepultura cristã na Igreja de Nossa Senhora da Candelária. E temos as primeiras informações do conflito sucessório aberto pela morte de D. Pedro, com dois rivais a digladiarem-se, Tôrô Có e Incinhate; tal crise, agravada pelos desmandos do capitão-mor José Pinheiro, iria pôr em risco o futuro da acção missionária e da própria presença portuguesa, já que os Franceses não escondiam o seu propósito de se instalarem como donos em Bissau.

Reexaminados os papéis do Conselho Ultramarino, deles se puderam extrair alguns factos que Sena Barcelos deixara de lado e que, vistos à luz das duas relações de 1694 e 1696 do bispo e do opúsculo de 1695 (tudo desconhecido por este historiador), ganhavam nova importância.

Julga-se, por isso, que valerá a pena reunir todos esses materiais, publicá-los em conjunto e fazer-lhes o devido comentário.

Os dois últimos decénios do século XVII são um período movimentado na história de Bissau. Durante eles se verifica a retirada dos missionários espanhóis, a sua substituição pelos padres portugueses da Província da Soledade, as visitas do bispo D. Fr. Vitoria¬no Portuense e intensificação da acção missionária, a crescente influência dos Franceses através da sua feitoria e dos seus navios, a construção da fortaleza portuguesa e a instituição da Capitania-Mor de Bissau, o aparecimento da Companhia de Cacheu e Cabo Verde, o conflito do bispo e do primeiro capitão-mor, etc.

No que segue, cingir-nos-emos essencialmente à análise e discussão das visitas pastorais e acção missionária de D. Fr. Vitoriano Portuense, aos seus conflitos com o capitão-mor José Pinheiro e ao problema da sucessão de Bacampolo-Có, só tocando nas outras questões na medida em que isso ajude ao esclarecimento daquelas. Era nosso intento, antes de escrevermos, procedermos à recolha sistemática das tradições orais dos Papéis, para averiguarmos em que medida nelas se conservaram reminiscências relacionadas com aqueles factos, mas apenas o pudemos tentar, sem quaisquer resultados, na zona próxima da cidade de Bissau. Não protelamos, por isso, mais a divulgação do que já apurámos através das fontes escritas.

Além do que se apontou, as relações e outros documentos que agora se reúnem - uns inéditos, outros já anteriormente publicados - têm também o interesse de fornecer uma ampla informação sobre as populações da Guiné na época, principalmente no respeitante aos Papéis da ilha de Bissau.

NOTAS
I - Os trechos em que SOUSA MONTEIRO se ocupa da questão vêm a pp. 245, 271-272, 278-279, 383 e 389 do vol. X (1853) de O Panorama, Lisboa.

II - JOSÉ JOAQUIM LoPES DE LIMA, Ensaios sobre a Statistica das Possessões Portuguesas {.../, I, Ensaio sobre a Statistica das Ilhas de Cabo Verde no Mar Atlantico e suas dependencias na Guiné Portugueza ao norte do Equador, Lisboa, 1844, parte 1ª p. 74-A.

III - CHRISTIANO JOSÉ DE SENA BARCELOS, Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, parte II, p. 119, Lisboa, 1900. Esta obra representa um trabalho imenso de pesquisa documental e continua a ser da maior utilidade. Pena é que raramente se indiquem as cotas dos documentos, que as transcrições tenham frequentes erros e que a arrumação (essencialmente cronológica), desprovida de titulos ou referenciações, torne por vezes diflcil a consulta, já que os índices são incompletos e mal estruturados.

IV - JOÃO BARRETO, História da Guiné, 1418-1918, pp. 129-130, 417. Lisboa, 1938.

V - ANTONIO JOAQUIM DIAS, «Glórias missionárias da nossa história - VII, O primeiro bispo que foi à Guiné», in Boletim Mensal das Missões Franciscanas e da Ordem Terceira, ano xxx, pp. 19-25. Braga, 1937. Ver também, do mesmo autor, «As missões católicas na evolução politico-social da Guiné Portuguesa», in Biblos, XIX, t. I, p. 223. Coimbra, 1943.

VI - A. TEIXEIRA DA MOTA, «Um príncipe de Bissau baptizado em Lisboa no ano de 1694», in Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agricola da Guiné, ano VII, nos. 73-75, Jan.-Mar. 1964, pp. 38-44; nº 76, Abr.-Dez. 1964, pp. 23-28; ano VIII, nº 77, Jan.-Dez. 1965, pp. 26-31. Bissau.

VII - Pe. ANTONIO LOURENÇO FARINHA, A Expansdo da Fé na África e no Brasil, I, pp. 74-75. Lisboa, 1942.

VIII - HENRIQUE PINTO REMA, "A primeira missão franciscana da Guiné (séculos XVII-XVIII)", in Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, XXIII, 89-90, Jan.-Abr. 1968, pp. 128 e 136.



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?