terça-feira, março 22, 2005

Guinéus (9/16)

MORREU SAMPA



«Morreu Sampa!» - foi o brado em modos de proclamação de todos os mancanhas da ilha de Bolama. Brado emotivo, como que assinalando acontecimento extraordinário; eco sonorizado de gente em ânsia, impaciente pelo fim de Sampa, um velho medalhado sem ir a campanhas e que alimentava a esperança de ser régulo. O seu nome, o seu prestígio e fama alicerçavam-se nesta estatística simples, de duas rubricas apenas: 22 mulheres + 180 vacas. No conceito do clã, tal soma dava patente de milionário, prestígio de juiz e senador de âmbito local, como primeiro passo para candidatar-se ao chefado do chão de mancanhas.
A notícia espalhou-se como tinta em mata-borrão: foi a todos os recantos. Da povoação do finado o bombom transmitiu incessantemente não com a característica de SOS, mas sim em tom eufórico de milagroso armistício orado e obtido por povos fartos, fartíssimos de se baterem.
A nova galgou a baía até S. João, alastrou pelo Quinará, rondou o Geba até o ultrapassar para atingir Bula e Có, chão de mancanhas e torrão natalício do defunto. Fora um êxito de transmissão e recepção em cadeia, morse gentílico nervosamente manipulado no tantã, o ancestral telégrafo muito anterior ao bisavô de Edison.
Sámenu, a antiga favorita, respirou de alívio. Precocemente envelhecida, sem dentes, seios encarquilhados e com oscilação de folha morta, viu chegada a hora da libertação. Ninguém a quereria. Para as outras vinte e uma mulheres de Sampa a reacção fora um encolher de ombros em exteriorização de abandono, de fatalismo. Mudariam de patrão... talvez para pior...
Restava-lhes a situação convencional de bestas de carga para os trabalhos pesados além da obrigação diária de pilar o arroz, fazer outros trabalhos domésticos, tratar do gado e ir à cidade vender o leite, a mandioca, ovos e galináceos.
Iam ser cedidas por herança, como rezes, para Cuádi, irmão de Sampa, um borrachão com pretensões a civilizado só porque vestia e calçava como os brancos e passava os dias nas baiucas da cidade.
Vacas e touros, por sua vez, pressentiram que havia algo... Não pelo matraquear do bombolom ou pelos clamores dos mancanhas, lá na povoação de Sampa. Eram ruídos frequentes. Os infelizes animalejos calcularam o perigo e os algozes lá foram ao coito da manada para levarem algumas camaradas. Depois, pelos mugidos de matadouro, concluíram que era a imolação ritual por ter morrido gente, decerto homem-grande.
Claro, fora Sampa! Tomara-se realidade o palpite guloso de parentes e patrícios que vinham aguardando com interesse o último suspiro, o canto de cisne do velho ricaço.
O infeliz herdeiro Cuádi mostrou-se liberalão, de mãos largas. A bebida e comida foram à descrição para todos os parentes e patrícios que vieram de perto e de longe falar mantanhas. O luto - por sua ordem - duraria uma semana, mais que fosse, até acabarem a carne, o vinho e as energias.
Adquiriu-se um bidão de aguardente de cana e os garrafões de vinho tinto, de marca, vinham aparecendo no ambiente fúnebre à medida que regressavam os mancanhas que iam à cidade colocar algumas pernas das quarenta vacas caídas ante o gume do machado. A colossal mortandade fora decretada por Cuádi e pelos parentes com mais teres e que trouxeram cada um a sua vaca como presente para o morto...
Os habitantes da cidade também foram bafejados com a morte de Sampa. Decorreram já dois meses que pela balança do mercado municipal não passava sequer um grama de carne porque o nativo se esquiva a fornecer gado para abate.
Os citadinos pareciam incrédulos ao verem os vendedores clandestinos, à luz do dia, a cair de bêbedos, oferecerem por qualquer preço as pernas vermelhonas de sangue empastado e envolvidas em folhas de bananeira.
À noite, nos subúrbios da cidade, rompiam fogueiras a realçar ainda mais o luar maravilhoso. A tamborilada repercutia incessantemente como pesado cilindro de som enquanto parentes e patrícios do morto exteriorizavam sentimentos a seu modo, na batucada e na comezaina, entrecortada por berros avinhados:
- Morreu Sampa, morreu Sampa!
O choro deu brado. Foi o maior de todos e o mais concorrido de que havia memória no memorial mancanha.


Dois aspectos da dança das raparigas do grupo étnico mandinga, no dia do encerramento das festas do "fanado" - circuncisão



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