terça-feira, março 22, 2005

Guinéus (8/16)

CAÇADORES NATIVOS



A caça é praticada por quase todas as raças que habitam a Guiné Portuguesa. Principalmente entre as tribos islamizadas (fulas, futa-fulas, mandingas e biafadas) há, na maioria dos casos, um ou mais caçadores por povoação.
Não existe o caçador puramente desportista encarando a prática cinegética como desporto, recreio ou meio de obter fama. A caça, para o nativo, é sempre um passatempo utilitário e, nalguns casos, de subsistência total, pois se há caçadores que em determinados períodos deixam a espingarda e pegam no arado ou qualquer outra ferramenta, também os há retintamente profissionais. Entre estes, alguns adquiriram a perfeição da prática venatória, dominando a fundo os processos técnicos, digamos práticos, de fazer a caça. Conhecem todas as espécies de fauna, seu habitat, horas e locais de dessedentação e alimento, impressão de pegadas e outros vestígios de passagem. Também como reage o instinto de conservação do animal quando pressente aproximação estranha ou é alvejado pelo caçador.
No ambiente da povoação o caçador, cem por cento caçador, tem jus a uma posição de prestígio e é alvo da admiração geral. As suas façanhas no mato, recheadas de lances de ardil, pontaria, sangue-frio e heroicidade, são o entrecho predilecto para o cavaco nas horas intermináveis de lazer, quando não ficam registadas como subsídio histórico da argúcia e valentia da raça que a tradição oral folheia com timbre romanesco ante a estupefacção da juventude.
O caçador nativo conhece, passo a passo, os locais onde a caça abunda, dentro ou próximo da sua região. São-lhe familiares os cursos de água, as clareiras onde domina o capinzal e os redutos espessos onde a vegetação se entrelaça orgiacamente em teia que veda a impor um limite visual de escassos metros.
Como meios materiais para praticar a caça, está generalizado o uso da longa, espingarda de carregar pela boca, de acabamento grosseiro, fabricada parcialmente pelos melhores ferreiros da tribo, ou obtidas clandestinamente do território estrangeiro. Muitas, das existentes, são relíquias bem conservadas e
renovadas do tempo das guerras tribais e da insubmissão perante o elemento civilizador. Munido da longa, o caçador faz a caça pelos sistemas de perseguição e de espera à luz do dia, ou de noite, com auxílio duma lanterna fixada na testa, cujo foco localiza e encandeia antílopes e felinos.
Na prática da caça o nativo usa além da arma de fogo uma infinidade de armadilhas, entre as quais os fossos disfarçados aonde animais caem, ou enlaçamentos colocados nos pontos prováveis de passagem dos pequenos antílopes. Servem-se, também, das queimadas para encurralar os animais num círculo de fogo, forçando-os a uma reduzida porta de fuga para os abater à paulada, a canhaco e a terçado.
Embora caísse em desuso, ainda há nativos que se servem dos arcos e flecha. A faca de mato é comum e serve para a defesa em último recurso mas, na prática, é mais um objecto de uso pessoal com muita aplicação no mato.
Em plena acção, o caçador nativo raro abate pequenos antílopes, que mal compensariam a pólvora duma carga brutal. Se é macho corpulento de gazela ou javali, vale o tiro. Depois, só o sim-sim, o boca-branca e o búfalo, que garantem uma centena de quilos de carne limpa, e o hipopótamo que proporciona carne na ordem das toneladas. O leopardo é sempre um alvo cobiçado pelo momento intrinsecamente venatório, de lance arrojado, e mais pelo valor da pele que é cobiçada e bem paga pelos civilizados, constituindo também um troféu.
Os caçadores, antes de partirem para o mato, untam o corpo com sucos vegetais de cheiro activo que se sobrepõem ao odor do corpo, a ludibriar o olfacto apuradíssimo dos animais.
Mas o pormenor mais curioso e bizarro do caçador nativo é a superstição e normas feiticistas. Condicionam mentalmente todas as fases felizes duma caçada às suas mezinhas e amuletos, não esquecendo a guarda-da-corpo que os protege (julgam) dos venenos dos répteis, dos cornos dos antílopes ou dos dentes e garras dos felinos... Os caçadores de raça islamizada fazem-se acompanhar de pequenos papéis com versículos do Corão e dependuram pelo corpo enorme variedade de amuletos (pequenos chifres, búzios, etc.). Atribuem a cada um a sua função miraculosa: uns para que não lhe suceda qualquer desastre de caça, encontrem os animais e possam alvejar com êxito os órgãos mais vulneráveis; outros para lhes dar o poder de reflexão no instante do contra-ataque do búfalo, hipopótamo ou leopardo, que por vezes investem em avalanche de fúria.
O caçador nativo é individualista e, por força da profissão, por vezes nómada. Durante as abaladas venatórias para locais distantes dorme no mato, bebe nos charcos e riachos e alimenta-se de frutos silvestres e, também, da própria caça que abate. Outros - das raças fula e mandinga, nomeadamente - enganam o estômago com a viciosa mastigação de nozes de cola.


À esquerda, o "almami" - padre da raça fula - antes de iniciar a prece do mês de jejum dos muçulmanos (Ramadã)
À direita, no momento da oração colectiva, os fiéis maometanos beijam a terra no final das repetidas vénias, em sinal de humildade. "Alá-cubaru" (só Deus é grande), repetem, em uníssono



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