terça-feira, março 22, 2005

Guinéus (15/16)

RIO CORUBAL



Descendo pelas montanhas do Fuja Djalom, na Guiné Francesa, o rio Corubal penetra na nossa província pela região fronteiriça de Cadé em percurso longo, ramificado e sinuoso, até à bifurcação com o canal que vem de Bafatá, e entra no Geba, outrora o famoso Rio Grande, onde chegaram no século XV as caravelas de Diogo Gomes e Cadamosto de que nos falam as crónicas das Descobertas.
São numerosos os rápidos do rio Corubal. Cusselinta e Saltinho, susceptíveis de aproveitamento hidráulico segundo algumas opiniões, são os mais importantes do nosso território. Foi neste último que se construiu, como solução provisória, a passagem submersível que permite durante alguns meses a ligação entre o Norte e Sul da província. Um pouco mais abaixo, onde o rio se estreita, está a construir-se com o grés como alicerce, a ponte Craveiro Lopes que beneficiará extraordinàriamente a rede rodoviária da zona sul da província para permitir no futuro uma exploração compensadora das riquezas das circunscrições de Fulacunda e Catió. É de admitir também a sua provável utilidade para o turismo, logo que seja possível actuar a sério neste importante sector de propaganda e receita que representa uma grande preocupação de muitos países e regiões.
O topónimo Corubal, segundo concluiu o comandante Teixeira da Mota, o mais categorizado investigador contemporâneo dos assuntos guineenses, é a deturpação de Colibá o qual, por sua vez, provém da região limítrofe de Coli. Outras fontes, porém, pretendem que a razão do nome se filia no facto de "corubal" ser corruptela de curbail, nome com que, nos recuados tempos, também se designava o âmbar.
Mas um autor antigo põe-nos a notícia transbordante de curiosidade de que o termo Corubal queria dizer «desavergonhado» numa tradicional expressão nativa. O rio galgava frequentemente o leito e o seu impetuoso caudal era useiro e vezeiro na destruição das culturas marginais. O arroz à beira do rio, o algodão, o café, o tabaco e outras culturas pequenas de tipo experimental, na parte enxuta, por vezes alagável, quando o Corubal era irreverente, atrevido. .. E daí, Corubal- o «desavergonhado»...

*

Decorria a época do extraordinário Caetano Nosolini, esse homem que encheu numerosas páginas da história da Guiné na primeira metade do século XIX, quando era tudo e ainda pioneiro de feitorias e estabelecimentos agrícolas nas margens do rio caudaloso. Na época do discutido monopólio de Nicolau Macedo com o exclusivo de comércio e navegação no rio. Na época em que se fazia, lá na foz, quando na baixa-mar, a colheita do âmbar, produto fossilizado das resinosas marginais que as águas do Corubal arrastaram para o acumular através dos séculos. Na época, ainda, das contínuas turbulências entre as tribos fulas, fulas-pretos, mandingas e biafadas em permanentes escaramuças conhecidas por «Guerras do Forriá», um Forriá que no dizer dos Fulas significa «terra da liberdade» apesar de acontecer as sucessivas chacinas, os incêndios das povoações, os roubos de gado e a captura dos vencidos, logo considerados escravos...
Uma época do Corubal remexido, dos pioneiros e dos belicosos Infali Sancó, Paté Coiada, Mamadú Paté e Bacar Guidali. Era um Corubal latejante de presença humana a ombrear com um outro período mais remoto que Francisco de Lemos Coelho nos descreveu em 1669: "Há no fim da terra de Guinalá hüa grande aldêa que chamaõ Curubale, que he como feira adonde vem mercadores de todas as partes a comprar, e vender, e nella se acha sempre o que se busca, vendesse nella principalmente muitos negros, e roupa, e tintas com que se tinge a roupa em Guiné de azul", acrescentando quinze anos depois: "he como feira de toda a terra; sendo que em todas estes reinos há feira franca de sete em sete dias... mas nessa de Curubale todos os dias de anno he feira".
A densidade populacional das regiões servidas pelo Corubal, especialmente o Forriá, é das mais baixas da província. A vida ausentou-se, cerraram-se os horizontes do comércio, da agricultura e da guerra. Desapareceram as grandes povoações onde chegavam as caravanas para o comércio do sal, dos escravos, dos panos e da tinta azul. As enxadas dos ponteiros cavando o solo humoso e alagável é uma recordação. O cruzar de espadas dos chefes belicosos não passa hoje dum tema histórico. O sossego é absoluto. Liberdade de expansão para a flora e fauna. Um retomo à Natureza.
Vem, daqui, o interesse turístico da região que se estende pelos vales do rio, pelas savanas, colinas e canais até à lagoa de Cufada e, mais ao sul, à mata de Cantanhez, reserva de caça. Não há hotéis, não há pousadas nem o quer que seja de artificial que proporcione comodidades ao turista. Mas pode-se lá chegar, sem odisseias, sem dificuldades, adoptando o campismo nas sedutoras margens dos rápidos de Cusselinta e Saltinho ou em viagem com retomo no mesmo dia para gozar os prazeres da pesca desportiva, as emoções fortes da caça ou as sensações aliciantes do naturalismo. No rio há variedade de peixes e os descomunais e pacíficos hipopótamos. Nos mangais a orlar o rio e no arvoredo próximo é numerosa a fauna aviária. Garças ribeirinhas, pelicanos, maçaricos e uma imensidade de passarada multicor. No mato aparecem a cabra selvagem, a gazela, o sim-sim, o javali, o porco-espinho, a onça, o búfalo e, por vezes, o portentoso elefante. São muitos os patos selvagens, as chocas (perdizes) e as galinhas do mato. Enfim um mundo diferente para os desportistas metropolitanos que se decidam a visitar-nos e até para os que vivem na província que não tenham ainda contactado com o mato, com o verdadeiro mato, tão cioso a ocultar-nos o seu exotismo e uma vida animal que nos evita e receia.
O mato não é aquela fonte de arrepios ou o manancial de ilusões que nos impingem os livros e os filmes destinados a leitores ou a plateias que se deliciam com aventuras tipo Salgari ou Tarzan... Goza-se nele uma quietude que reconforta, um ambiente silente de oásis como entorpecente que não vicia e que é um refrigério. Os odores silvestres, a abundância do verde, a vida ao ar livre que nos liberta da rotina dos livros de ponto, dos despeitos e das competições humanas. O andar perto da vida animal adivinhando existências que se ocultam e que fogem de nós. Os esquilos, os roedores, os répteis, as borboletas e a passarada polícroma. Todo um conjunto que nos arrasta a sentir interesse profundo pela Natureza. E, à noite, a musicalidade dos insectos, das aves nocturnas, os ouvidos cheios da orquestra ininterrupta dos grilos, o ruído surdo das águas dos rápidos e o toque dos tambores nas povoações distantes... Estamos certos que Kipling gostaria de ter vindo ao Corubal...
O próprio fenómeno do macaréu que se regista na bifurcação do rio com o canal e o rio Geba é um aliciante motivo turístico. O fenómeno, semelhante ao «proroca» dos brasileiros que se regista no Amazonas, tem constituído através dos tempos, desde que ali apareceram as caravelas de Diogo Gomes até à actualidade, forte motivo de curiosidade. Só por si, um espectáculo digno de presenciar-se. É uma enchente a modos de blitz, uma onda avassaladora de águas em turbilhão e grande fragor. Já André Álvares de Almada, o célebre capitão mercante do tempo do marfim, do ouro e dos escravos, a referenciou com esta saborosa descrição:
«Esta navegação é perigosa por causa da água do Macareo, que é encher este rio lá em cima com três mares somente. Estando a maré vazia, dando três mares, fica preia-mar de todo; e antes de virem estes mares se ouve roncar um grande espaço e mete medo às pessoas que nunca viram isto. E correm as embarcações grande risco, mas já os pilotos delas sabem as conjunções, e as tomam de maneira que não perigam. Algumas caravelas nossas de até sessenta moios, que algumas vezes lá vão, no passar, quando dá a água do Macareo, usam desta maneira. Têm algumas sonderiças e amarras ostadas umas nas outras, e estão prestes com elas, e o navio surto e a amarra na mão. Tanto que dão aqueles mares e vão largando e vão sobre elas aleiando muito depressa as amarras, e desta maneira passam sem perigo, porque se estivessem com a amarra abitada não deixariam de sossobrarem e passarem trabalho.»

*

Conhecemos o rápido de Cusselinta há uma dezena de anos. Um caçador mandinga acompanhou-nos como cicerone e pisteiro. Prometera-nos mostrar os hipopótamos. Depois dum banho refrescante na água límpida retida no grés (os crocodilos não estão ali...) o nosso pisteiro quis ir mostrar-nos os bichos, um pouco mais abaixo, onde o rio se estreita. Caminhámos marginando o mangal. Aproveitámos todas as veredas para espreitar as águas quietas do rio. Impaciência, curiosidade... Chegámos a um ponto onde o capim ligado ao mangal estava batido como que assinalando a passagem de coisas descomunais. As pegadas, amplas e fundas, e o excremento fresco, ainda a fumegar, eram uma indicação. Entrámos no espesso do mangal e subimos pelos troncos mais fortes a procurar o melhor ponto de vigia. O acesso era um tanto difícil. O nosso amigo caçador mandinga, pisteiro famoso, puxou do seu fotan (apito feito dum pedaço de bambú) e rompeu um silvo cavo, fazendo modulação de sons. Apitou, apitou. E quando já estávamos impacientes, desiludidos, como que logrados, eis que surgem das águas, lá perto da outra margem, duas cabeças de hipopótamos, como proas de submarinos que vêm à superfície... A flauta encantada do nosso pisteiro confirmara a apregoada virtude de fazer aparecer os volumosos mamíferos.
Empoleirados como símios, notámos que a carabina ficara presa pela bandoleira num tronco fora do alcance da mão. Imprevidência de inexperientes. Não convinha fazer-se ruído. Os bichos já nos tinham observado. E daí a fazerem a imersão foi um momento (um momento em que ficámos estáticos...). Nem, ao menos, tivemos a desenvoltura de fazer uso da «Zeiss» que trazíamos dependurada no pescoço, aberta e focada, pronta a fazer o clic...
Fracassámos no tiro, fracassámos na foto!
Mas conservamos, ainda hoje, a sensação indefinida desses momentos tão felizes, tão belos, vividos mais perto da Natureza.



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