terça-feira, março 22, 2005

Guinéus (10/16)

ILHÉUS



No penhasco onde assenta o farol não há rebentação de mar e neste lado, na ilha irmã, o quase imperceptível ondulado das águas estira-se preguiçosamente sobre o lodo reconquistando com pezinhos de lã, o terreno deixado antes no fadário rotativista das marés. Há brandura a mais no canal: mais parece lagoa de parque dominical a coberto de ventos que alteram o engomado da toalha líquida. Ambiente fictício, pois a quadra é vezeira em furiosas excitações desses famosíssimos tornados que em orquestração aterradoramente sibilante desabam rajadas ciclónicas a imprimir movimentos convulsivos. As coi$as sobre o solo passam a bater, a quebrar e a oscilar desabridamente. O ambiente de quietude claustral cede vez a outro, este aspecto de chocalhante debate em hospício de alienados. Entretanto o sossego é pleno e, de ilha para ilha, a visibilidade esmaltada, láctea, permite a destrinça dos verdes do mangal da beira-mar e das manchas de mato com palmares exuberantes a compor opulenta cúpula de um verde denso.
Uma canoa gentílica demanda Bolama. Ex-tronco que caiu ante a violência dos golpes de terçado e que milhentas de tasquinhadelas de machete tornou côncavo e navegável. Singra perfilhada ao poilão que referencia a povoação bijagó de Ametite, lá na ilha que pelo nome parece ser exportadora de galináceos. Os remadores parecem pressurosos em atingir a costa bolamense receando, certamente, a aparição brusca do tornado. É que, lá adiante, em riba, no céu, expande-se assustadoramente uma silhueta negra que vem do sul, lá dos lados do Atlântico. E os corpos dos remadores inquietos erguem-se num arremesso de frenesi para se deixarem cair em força, remo firme no braço robusto a fender a água com violência. Na praia o sírio aguarda-os aparentando radiância de quem acolhe velhos amigos. Decorre, porém, o período da campanha e o coconote e óleo de palma estão por bom preço. Nem sempre perdura acordo entre os magnatas de Bissau e, daí, acordo denunciado, vai de expedir-se para as operações e pontas uma subida de cotação que é sempre salutar.. . Tudo se movimenta. Volta-se ao trabalho absorvente. A neura tropical some-se e surgem expressões confiantes, pois movimentar o corpo para o aquecer, em terra quente, é disparate.
Um bando de maçaricos foge espavorido quase rasando a água e enchem a enseada com pios estrídulos de alarme. É a canoa que chega. São canhabaques, os arrediços ilhéus que ao venderem os seus produtos evitam os centros civilizados. Denuncia-os o seu dialecto ruidoso e gutural. Alguns, de calção de couro e turbante negro haviam já saltado à água a amparar a canoa para amortecer o embate no cascalho da praia. Os remos colocados ao través pingam lágrimas salgadas por tanto gemerem na fricção contínua nos bordos da canoa. Os cabaças cheios de óleo de palma com laivos sanguíneos a escorrer são alinhados na praia. Dentro da canoa as pás de tagarra atiram o caroço para as sacas que seguem depois sobre os dorsos possantes dos trabalhadores da tribo papel. Dia grande! O comerciante levantino teve à sua conta nada menos que cinco canoas carregadinhas de produto. Uma delas grandona, como autêntico cruzador nativo dos recuados tempos de Tristão. O cabo-verdiano da loja em frente não comprou um bago. Passou o dia a falar com o lojeiro por não ter que fazer... E o europeu, o novato Silva, que já contraiu as primeiras febres, não conseguiu comprar sequer um litro de óleo...
Chegou a noite. Os ilhéus confraternizam no alpendre em volta do braseiro. Queima-se capim para afugentar as irritantes melgas. O vozear é tremendo. Fumam e bebem à desgarrada. No terreiro, entre as lojas, o Silva e o cabo-verdiano passeiam cá e lá num giro-giro de pêndulo. Dentro de casa, o comerciante sírio quase encosta o ouvido ao alto-falante do receptor para não perder uma palavra do noticiário sobre a guerra de Israel.
No dia seguinte, cedo, aproveitando a maré, os ilhéus canhabaques fazem a viagem de regresso. Levam mantimentos para alguns meses: tabaco, aguardente de cana e uns quilos de arroz em casca. E basta! A sua ilha, com palmares descomunalmente densos e ricos, como generosa despensa da Natureza, faculta-lhes uma vida paradisíaca, perenemente estival...


Na foto da esquerda, uma rapariga biafada baila, ao som do tambor, e do apito...
Na da direita, tocadores de tambor, componentes da orquestra da povoação



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